Serei para sempre uma mulher que foi violada

Passei muitas horas a olhar para paredes, para o céu, para o escuro da noite, confiando que o tempo passaria sempre, mesmo se eu não fizesse nada ou andasse pouco de cada vez. Como poderia mexer-me, se, nessa altura, até ao abraçar o meu pai me sentia nauseada?

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ninocare/Pixabay

Tenho de viver com a minha violação como quem vive de corrente ao pé. E todos os dias tenho de vestir a armadura que veste uma sobrevivente. Não é que goste dessa palavra, nunca gostei. Mas quem vive uma violação e respira no dia, no mês, nos anos seguintes, não vive apenas com ela, mas com o rasto também. Quem sobrevive a uma violação lida com os outros, com o nojo ao toque, com o medo dos gritos e da força, com insinuações de culpa, com o pânico ao sítio, com choros e memórias inusitadas.

Todos os dias me lembro que fui violada. Não todo o dia, todos os dias, mas todos os dias. E quase todos os dias me vêm as lágrimas aos olhos. Não só por mim, mas pelas vítimas que aparecem nas notícias e nos livros, pelas que nunca contaram a ninguém, pelas que se sentem culpadas, pelas que foram e voltaram do inferno tantas vezes, pelas que persistem, pelas que morreram.

Nunca choro de orgulho por ter sobrevivido, como gostaria tanto, mas sempre porque o vivi e não consegui ultrapassar. Pelo menos, moldei a mestria de sorrir no segundo seguinte, de sumir à francesa para a casa de banho e de não espumar de raiva quando ouço piadas ou discursos diminutos e sarcásticos sobre violações. Não me rio, não posso achar piada, não consigo achar piada quando o motivo de chacota já fui eu. Ou de descrença. Ou de culpabilidade. Ou de morais sobre saídas à noite, vestidos curtos ou roupa interior de renda.

Mas também não posso ser a heroína. Não ainda. Não posso ser a que sobreviveu, a que curou, a que lambeu as feridas e é melhor pessoa. Não tão cedo. Para isso, é preciso coragem e, para mim, o tempo só passou. Passei muitas horas a olhar para paredes, para o céu, para o escuro da noite, confiando que o tempo passaria sempre, mesmo se eu não fizesse nada ou andasse pouco de cada vez. Como poderia mexer-me, se, nessa altura, até ao abraçar o meu pai me sentia nauseada? Como me poderia curar, se houve tempos em que nem abraçava os meus amigos? Como posso ter ultrapassado se ainda me custa olhar homens nos olhos?

Os meses foram esbatendo partes da memória e materializando a culpa. Fiquei mais leve e pude erguer-me, evoluir. Mudei de cidade e de emprego. Com o virar de um ano e, depois, de dois, fui contando aos amigos. Chorei, nas primeiras vezes que o disse em voz alta. Mas a fala habituou-se à história. Eu habituei-me à história. Ficou mais fácil traduzir o que eu sentia em palavras, mesmo quando elas eram apenas uma amálgama sem nexo e sem pontuação. Mas a verdade não é sempre decente e limpa. Alguns dos que ouviram a história choraram comigo em silêncio, outros gritaram e esbracejaram, a reclamar com Deus e com o mundo. Mas ninguém soube a história por completo. Nem eu sei a história por completo.

Só muito recentemente compreendi que a minha violação se repercutiu na minha vida sem possibilidade de remendo. Tudo em sua volta se alterou, como se uma borboleta batesse as asas em África. Percebi que não poderei nunca ser a pessoa que sonhei ser porque a pessoa que sonhei ser nunca teria sido violada. A pessoa que sonhei ser morreu naquela noite. Desde então, tive de construir-me de novo, de moldar-me de novo e repetidamente. A relação com o meu corpo nunca será igual porque alguém se apoderou dele sem o meu consentimento. A minha confiança nos homens nunca será igual porque alguém a estalou para lá do ponto de conserto. A minha confiança em mim própria, aliás, sofreu o mesmo destino. As questões tinem há anos, como um zumbido, na minha cabeça: será que eu não podia mesmo ter reagido? Será que as pessoas à minha volta foram tão más assim? Será que as perdoei por isso? Será que me poderei apaixonar e confiar a minha alma e o meu corpo a alguém? Será que vou poder voltar a olhar para um homem ser ter medo que ele me vá magoar? Será que, algum dia, eu conseguirei não estar sempre alerta? Será que chegará um dia em que eu não me lembre?

Não posso alterar o rumo da história porque o avanço linear do tempo não me deixa reescrevê-lo. Não consigo ignorar as questões porque não tenho palavras para articular as respostas que mereço. Não posso esquecer-me porque faz parte de mim.

Passaram cinco anos e tudo dissipou, na mesma medida em que o trauma permanece. A minha vida é um tapete sacudido entre feixes de luz, ao final da tarde. A poeira assenta devagar, mas inevitavelmente. Só depois, os meus olhos se ajustarão. Só depois, cessarei de chorar.

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