O que pode fazer um artista que não gosta do Governo do seu país?

Há os que ficaram indignados com as declarações de Leonor Antunes a apoiar o Governo de Costa e também os que ficaram siderados com as reacções a essas declarações. Ouvimos artistas, curadores e políticos sobre o que significa representar Portugal na Bienal de Veneza. Voltámos a ouvir a artista.

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Leonor Antunes Miguel Manso

Há dois anos, na última Bienal de Arte de Veneza, o pavilhão dos Estados Unidos foi um dos que mais atraíram público e tiveram mais atenção da imprensa. Com as suas pinturas-instalação, o artista Mark Bradford propunha uma Casa Branca em ruínas. Lia-se como um manifesto anti-Trump, o Presidente que chegara já o artista estava escolhido para Veneza. Eleito Trump, o projecto de Bradford passou a responder também a um dilema: como é que um artista negro gay, que se define como um intelectual liberal e progressista, pode representar os Estados Unidos no estrangeiro quando não se sente representado pelo Governo? 

Foi precisamente de Mark Bradford que nos lembrámos quando se levantou na semana passada a polémica em redor das declarações da artista portuguesa Leonor Antunes, que vive em Berlim desde 2004, o nome escolhido este ano para representar Portugal na 58.ª Bienal de Arte de Veneza, com inauguração marcada para Maio e considerado um dos mais importantes eventos no calendário da arte contemporânea. 

Com uma fulgurante carreira internacional, Leonor Antunes, 47 anos, revelou que tinha aceitado participar no concurso por convites organizado pela Direcção-Geral das Artes (DGArtes), o organismo do Ministério da Cultura a que cabe gerir a operação da bienal em Veneza, não só porque passou a haver pela primeira vez um júri independente para decidir a escolha que acabou por recair em si, mas também porque, como artista, quis apoiar o Governo de António Costa, num mundo em que o “fascismo” e o “populismo” estão em ascensão. 

Na conferência de imprensa de apresentação da bienal, ao lado da ministra da Cultura, a artista afirmou ainda que nunca aceitaria representar um governo de direita. Especificou mais tarde, depois de uma pergunta do Observador, que incluía nessa recusa o PSD e o CDS, embora os reconhecesse como partidos democráticos: “Eu defendo valores de esquerda.”

Os dois partidos na oposição manifestaram o seu desagrado: em comunicado o grupo parlamentar do PSD desafiou a ministra a clarificar se a representação portuguesa na bienal é feita em nome do Estado, enquanto o eurodeputado Nuno Melo se mostrou indignado, no Facebook e em declarações a vários jornais, pedindo a substituição da artista ou a demissão de Graça Fonseca. 

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Leonor Antunes foi a única artista portuguesa que participou na exposição internacional da última edição da Bienal de Veneza NICK ASH

O jornal Expresso, na sua avaliação semanal, punha a artista a descer, por misturar uma representação nacional com bandeiras partidárias. Já o Jornal de Notícias, numa rubrica semelhante, pedia a Leonor Antunes para se conter nas suas opiniões.

Tal como Mark Bradford, Leonor Antunes pode escolher que governo prefere representar? Pode um artista recusar-se a representar um país devido à cor política do governo no poder? Há alguns limites para falar de política nacional que se devem impor a um artista que representa Portugal? – são as perguntas que fazemos a curadores, artistas e também políticos.

 “O que eu quis dizer foi que se no anterior modelo me tivessem feito um convite que não passasse por um concurso público mediado por um júri independente e fosse gerido por mera iniciativa deste ou daquele político ou secretário de Estado, eu não aceitaria participar e questionaria esse modelo”, disse a artista, numa conversa por email com o PÚBLICO, escusando-se a regressar à questão partidária das suas declarações. “Foi o que quis distinguir, quando me referi que me recusaria a aceitar participar nos moldes em que anteriores governos o fizeram.”

Pela primeira vez, continua Leonor Antunes, foi aberto um concurso público, com convites a oito curadores, que apresentaram um projecto específico para a bienal, no seu caso através do curador João Ribas, antigo director do Museu de Serralves. “Não foi, portanto, uma decisão/convite do Governo, mas um gesto accionado pelo mesmo, incumbindo a tarefa a um júri especializado no campo das artes plásticas.” O júri era constituído por Catarina Rosendo (historiadora de arte), Jürgen Bock e Sérgio Mah (responsáveis por participações anteriores na bienal), além de dois elementos da DGArtes e do AICEP.

A resposta é afirmativa quando perguntamos ao fotógrafo Daniel Blaufuks se um artista que vai a Veneza pode falar de política nacional. “Pode e até deve, mas a política nacional não é necessariamente os partidos. A política que interessa está acima dos partidos. Podemos dizer que não aceitaríamos representar Portugal num regime totalitário de direita ou num regime totalitário de esquerda, mas devemos evitar que essa nossa opção entre numa partidarização, excluindo determinados partidos democráticos.”

Na opinião deste artista, se se vai representar Portugal numa bienal de arte, então deve-se, pelo menos aparentemente, representar uma ideia de Portugal, que é uma democracia. “E claro que também podemos perguntar o que é a representação de um país, porque também me parece óbvio que o artista só se vai representar a si próprio.” Ele é um cidadão livre e pode pensar o que quiser sobre o mundo. “Isso não põe em causa a qualidade do seu trabalho e as razões porque foi escolhido ou escolhida.” 

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Leonor Antunes Miguel Manso

No Instagram, Miguel von Hafe Pérez, curador independente, indignou-se com aqueles que criticaram a artista: “Serei o único a ficar siderado com as reacções à declaração da Leonor Antunes? Pede-se contenção a um artista porque vai representar um país?... Tenham vergonha!!... Os artistas são seres pensantes com o livre arbítrio de declararem as suas preferências políticas sempre que o entenderem, não são enfeites para os croquetes de inauguração de eventos anódinos.” Cabe-lhes o direito, acrescenta, de comentarem a realidade envolvente, tanto a nível pessoal, como no seu próprio trabalho. “Eu, se fosse norte-americano, brasileiro, italiano ou húngaro, por exemplo, nunca aceitaria um encargo do Estado neste momento. Olhando para a nossa realidade, o actual líder do partido da oposição esteve 12 anos a maltratar, marginalizar, ridicularizar e prejudicar social e economicamente o tecido cultural do Porto.”

A historiadora de arte Raquel Henriques da Silva diz que respeita a posição de Leonor Antunes, mas compreende que o PSD e o CDS ripostem: “Acho que há uma dimensão individual que só nos resta respeitar, como o faria se uma pessoa dissesse que só iria se o governo fosse do PSD ou do CDS. Mas vivemos num Estado democrático e os partidos à direita do espectro político são democráticos.” Aliás, acrescenta, no caso da cultura em Portugal, quando se discute essa questão de esquerda-direita, há que ter cuidado com as generalizações, “porque um dos melhores períodos, do ponto de vista da governança, foi no final dos anos 80 com Teresa Gouveia, num governo do PSD.

Jorge Barreto Xavier, que foi secretário de Estado num governo PSD, com Passos Coelho como primeiro-ministro, já pediu, publicamente, que a ministra Graça Fonseca se distancie das declarações da artista. “A Leonor Antunes é certamente uma artista contemporânea com um trabalho relevante e que representa bem Portugal. O que critiquei não foi o modelo de escolha, mas a atitude da artista e a ausência de uma posição da ministra da Cultura a distanciar-se deste tipo de declarações.”

Na sua opinião, um artista pode dizer o que quiser, mesmo se não quer representar Portugal com um governo de direita, porque a liberdade de expressão deve ser defendida, mas, como se trata de uma representação de Estado, “bastava a ministra dizer que se distanciava deste tipo de declarações”. 

O gabinete da ministra, contactado pelo PÚBLICO, reiterou que não tem declarações a fazer sobre o assunto.

Foi com Miguel Honrado na Secretaria de Estado da Cultura e Paula Varanda na DGArtes que a introdução do concurso permitiu que os artistas ou curadores deixassem de ser uma escolha directa do Estado. Na maioria das vezes, o nome era indicado pelo organismo que geria essa actividade – como a DGArtes ou anteriormente o Instituto da Artes –, mas houve anos em que foi uma indicação de um membro do governo, como no caso de Joana Vasconcelos.

“O modelo de organização estatal, seguido por Portugal ao longo de décadas, foi relativamente estável e atravessou governos de esquerda e de direita”, defende Barreto Xavier, que também foi director-geral das Artes, sublinhando que os critérios que levaram à escolha de Helena Almeida, Julião Sarmento ou João Maria Gusmão e Pedro Paiva não deram resultados perversos. “Foi decidido alterar o modelo pelo actual Governo, não tenho nada contra novos modelos, mas trata-se de uma declinação do modelo de organização estatal por via concursal”, diz Barreto Xavier, uma vez que a DGArtes/Estado é que propõe os concorrentes.

Pedro Lapa, comissário da representação nacional em 2001 com o artista João Penalva, achou as afirmações de Leonor Antunes “um bocado vagas” e não sabe se percebeu exactamente o seu sentido. “Ficamos a saber que a Leonor Antunes está muito satisfeita com a política que este Governo tem levado a cabo para as artes visuais.” 

O antigo director do Museu Berardo recorda que foi com o Governo de Passos Coelho, durante a troika, que se cancelou o aluguer do espaço expositivo que Portugal tinha em Veneza na Fundação Marcello, onde expuseram Ângela Ferreira ou Francisco Tropa, para resolver o problema de o país não ter pavilhão nacional na área principal dos Giardini. Por isso, no ano seguinte, foi a vez de Joana Vasconcelos chegar à bienal sem espaço fixo a bordo de um cacilheiro. “Portugal é dos poucos países europeus que não têm um pavilhão nacional nos Giardini, percebe-se que certas coisas possam ser sentidas como desprezo. Pode existir um conflito directo com determinados aspectos políticos e culturais de um governo”, continua Pedro Lapa. 

Cita o caso do artista espanhol Santiago Sierra, que proibiu todos os visitantes que não tinham passaporte espanhol de entrar no seu pavilhão, numa reflexão sobre a Espanha como a fronteira sul do mundo, durante o Governo de José Maria Aznar. “Ele criou uma entropia no sistema de representação nacionalista na sua lógica endógena”, lembrou Pedro Lapa.

“Claro que à artista lhe assiste toda a liberdade de não querer ser representada por determinado governo, mas o que ela faz em Veneza é representar o país, uma entidade que não se confina a um governo. É bastante mais ampla, felizmente”, explica Lapa.

Tal como começou por dizer na conferência de imprensa, Leonor Antunes sempre se questionou, enquanto artista, como, quando e em que circunstâncias poderia aceitar o convite para representar o país em Veneza: “Quase todos os artistas que conheço acabam por mais cedo ou mais tarde representar este ou aquele país na Bienal de Veneza, pelo facto de terem nascido ali, ou vivido acolá, ou por uma troca entre representações de pavilhões.” No seu caso, lembra que não vive há vários anos em Portugal, que o seu trabalho não lida com questões autobiográficas e que incorpora, aliás, elementos que são representativos da prática de outros autores. 

A sua obra interroga, de certa maneira, a forma como os artistas são legitimados ou esquecidos, principalmente as mulheres: “Presta homenagem a alguns ‘personagens’ que a meu ver foram insuficientemente reconhecidos ao longo da história.” É o caso de algumas mulheres – questiona, exactamente, “noções de representação ou sub-representação”.

Cuba, como lembra Blaufuks, levou num ano vários artistas estrangeiros. Este ano, por exemplo, a artista Natascha Sadr Haghighian, que tal como Leonor Antunes também vive e trabalha em Berlim, vai representar a Alemanha num trabalho que questiona a noção de nacionalidade e de identidade. O seu currículo dá várias alternativas para o lugar e data de nascimento: Budapeste (1987), Sachsenheim (1968), Austrália (1979), Munique (1979), Teerão (1967), Londres (1966) ou Irão (1953).

Artistas militantes

Se o contexto das declarações de Leonor Antunes talvez não tenha sido o melhor, reconhece Nuno Crespo, crítico de artes plásticas do PÚBLICO, não vale a pena fazer delas um caso: “Toda esta polémica não é sobre Leonor Antunes, mas um aproveitamento político indevido e lamentável.”

Não é novo o facto de um artista tomar uma posição político-partidária e isso também não devia causar espanto, defende Nuno Crespo. Sempre houve artistas que endossaram políticos. “Sem que isso os tenha ensombrado, há também artistas que não só articulam pensamento político, mas exercem algum tipo de militância. Por isso, que um artista diga que só aceita representar um país num determinado contexto histórico, porque se revê nas suas estratégias políticas, sociais e culturais é não só natural, mas importante. Resgata os artistas de uma espécie de posição decorativa e acrítica e coloca-os no centro de um pensamento acerca do mundo e dos seus acontecimentos.”

Para Nuno Crespo, o que as declarações de Leonor Antunes mostram é que o lugar da arte e dos artistas é um lugar de discurso e não um lugar de silêncio. “Por isso, só se pode respeitar a expressão livre do seu pensamento e louvar que a artista não deixe limitar o seu pensamento neste momento de tão grande visibilidade.”

Daniel Blaufuks diz que tudo é política, mas a arte consegue ser também poesia: “Orgulhem-se de, apesar de não termos tido praticamente política cultural, nem à esquerda nem à direita, termos artistas de tanta qualidade que representam essa ideia nacionalista de um pavilhão nacional, uma ideia que já deveria ser obsoleta há anos.”

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