E agora?

É necessário salvar a cidade, a vida e as actividades dos moradores que a fizeram. Uma operação da envergadura da Fidelidade exige ponderação cívica e política.

Agora precisamos de saber qual a resposta que o Estado e o Governo querem e podem dar.

No passado mês de Fevereiro foi tudo finalmente noticiado pelos jornais. O Tribunal de Contas concluiu que a venda das seguradoras da CGD (Fidelidade, Multicare e Cares), realizada há cinco anos através de uma controversa privatização, foi desvantajosa para o “interesse público”. Também foram revelados, com direito a primeira página, os opacos fluxos financeiros subjacentes à venda do portefólio imobiliário da Fidelidade à Apollo (gestora de fundos de investimento norte-americana): 271 imóveis foram comprados à Fidelidade por 425 milhões de euros, e graças a uma refinada construção accionista em cascata, que começa no paraíso fiscal das ilhas Caimão, passa por sociedades no Luxemburgo e quatro novas empresas fundadas ad hoc na Madeira, para acabar em Lisboa, nos escritórios da Square Asset Management II Consulting, a empresa que passou a gerir o “negócio” das denúncias dos contratos de arrendamento para recolocação dos imóveis no mercado. Uma operação financeira dúbia e perniciosa, isenta de IMT e aprovada pela Autoridade da Concorrência, que veio descompaginar a cidade e a vida de cerca de 2000 habitantes, impunemente.

Antevendo a agressividade deste golpe financeiro, assim como a consequente operação de “despejo” massivo, os moradores mobilizaram-se. Desde o início de 2018, juntámos centenas de inquilinos em assembleia, reagimos para denunciar a opacidade e as consequências deste processo, pedindo atenção e uma intervenção política e legislativa célere e afirmativa. Fomos surpreendidos pela permissividade com que o Estado e o Governo viabilizaram esta enorme e obscura operação, pondo em xeque os valores da habitação sancionados pela Constituição e o respeito pela economia do país.

Na Primavera, a Fidelidade recusou liminarmente as propostas de aquisição dos imóveis por parte dos moradores, alegando a suposta indivisibilidade do negócio. Neste contexto, exercermos o direito de preferência aparentou ser a única solução, mas a lei vigente era dúbia quanto aos inquilinos em propriedade vertical (a grande maioria dos prédios em venda). Solicitámos a intervenção da Câmara de Lisboa (CML), para que se juntasse aos moradores fazendo valer o seu direito de preferência enquanto fundeira, esse inequívoco. A câmara ignorou o nosso pedido e veio anunciar pouco depois as virtudes da venda dos terrenos da feira popular à Fidelidade. Ficam as dúvidas sobre a oportunidade e os meandros da negociação. Mas a Câmara do Porto e de Évora manifestaram o seu interesse em exercer o direito de preferência e aguardam hoje um desenvolvimento jurídico.

Na Assembleia da República, o Grupo de Trabalho sobre Habitação, o PCP e o BE assumiram a preocupação e, a 18 de Julho, conseguiu-se a aprovação da alteração à lei que a partir daí restituía o direito de preferência, de forma inequívoca, a todos os arrendatários. Mas o Presidente da República vetou a lei e remeteu para nova discussão em Setembro, depois das férias. Aproveitando este mais que oportuno hiato de tempo, a Fidelidade antecipou as escrituras com a Apollo e efectivou a venda, embora tivesse oficialmente comunicado que estas só ocorreriam após 7 de Setembro. A 11 de Setembro é novamente discutida a lei e a alteração é aprovada pelo Presidente, para ser finalmente promulgada a 12 de Outubro. Os tempos da alteração legislativa e das datas das escrituras não parecem resultar de inocente coincidência.

Os inquilinos voltaram a poder exercer inequivocamente o seu direito de preferência, mas os inquilinos da Fidelidade não estão contemplados pela nova lei, visto que as escrituras foram apressadamente celebradas imediatamente antes da promulgação. É o paradoxo de uma batalha ganha para o futuro e perdida na urgência do presente.

A história de um ano de batalhas destes moradores mereceria uma redacção ampla e detalhada. O movimento internacional Cities for Housing, lançado em 2018 por 11 grandes municípios, exigiu medidas globais contra a expulsão de moradores dos centros urbanos, a especulação imobiliária e a gentrificação. Em Portugal foi necessário inventar e implantar um caminho para perspectivar o nosso futuro na cidade. Esbarrámos com a dificuldade de diálogo, com a oposição de interesses, com a arrogância e o calculismo da Fidelidade, com a falta de visão das instituições bancárias, com o veto do Presidente, com as elevadas custas judiciais, com a inércia da CML, com os novos planos para a cidade elaborados em conivência com a especulação imobiliária, com a perigosa retórica do apoio restrito às camadas mais fracas da população, com o ruído das histórias individualizadas, com a invisibilidade de tudo quanto divulgámos ao longo do ano, com uma lei da habitação iníqua, com a indiferença e a passividade do país.

Que a Apollo escreveu agora a alguns inquilinos, oferecendo “condições especiais para a aquisição” das suas casas, também já foi noticiado. Mais um paradoxo, na realidade. A negociação com os inquilinos escreverá mais um capítulo pouco digno desta história. Garantidas pelos efeitos catastróficos da “lei Cristas” — a obliteração de qualquer benefício ou direito dos inquilino de longa data —, as novas empresas proprietárias, subsidiárias da Apollo, propuseram preços paradoxais e incompreensíveis, porque, alegando oferecer aos inquilinos prioridade na negociação, desconsideram-nos por completo e ignoram as reais condições dos prédios e dos locados.

Muitos destes imóveis nunca foram requalificados, possuem infra-estruturas deficientes e sofreram significativas carências na manutenção. Numerosos inquilinos ocuparam-se da sua conservação durante décadas. Este património imobiliário, descuidado pela Fidelidade durante longo tempo, alimentado pelo rendimento consistente das rendas (na maioria dos casos actualizadas), foi subavaliado, privatizado e vendido ao desbarato para ser re-“oferecido” agora aos inquilinos a preços especulativos incomportáveis.

O art. 65.º da Constituição sanciona que a habitação é um direito e não pode ser integrada numa pura lógica de mercado.

É necessária uma intervenção para a defesa dos moradores na avaliação e revenda destes imóveis.

É necessário salvar a cidade, a vida e as actividades dos moradores que a fizeram. Uma operação da envergadura da Fidelidade, que num único golpe é capaz de destabilizar centenas de famílias e empresas e milhares de pessoas, exige ponderação cívica e política. Interrogamo-nos sobre a sustentabilidade do projecto da cidade e sobre as práticas democráticas.

Temos estado atentos. Que formas têm o Estado e a Democracia para desenvolver e proteger o bem comum que está na essência da sua constituição?

E agora? Continuamos atentos. O país e o Governo devem-nos uma resposta.

THEMIS – Associação pela promoção dos valores cívicos da habitação e da cidade

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