Marcelo em Angola numa lusofonia ameaçada

Portugal depende muito das relações lusófonas para o futuro e este, no quadro do novo mundo, começa agora.

A adesão de Portugal à UE e o relacionamento com os países de língua portuguesa assumem-se como desígnios nacionais. É útil ter presente esta dimensão na visita que o Presidente da República inicia a Angola.

Portugal foi o único país que descolonizou após a queda de uma ditadura. A liberdade e a libertação foram aceleradas por essa queda numa luta comum. Aliás, a maioria dos dirigentes dos movimentos de libertação formaram-se politicamente em Portugal, na Casa dos Estudantes do Império, extinta pela PIDE.

Antes, o grito do Ipiranga do primogénito do rei de Portugal institucionalizou a independência do Brasil. Com a reconquista da liberdade, a Constituição de 1976 privilegiou o relacionamento com os países de língua portuguesa e institucionalizou a defesa da independência de Timor-Leste. A solidariedade após o massacre no cemitério de Díli fala por si. As negociações de paz para Angola, ao ocorrerem em Portugal, reforçaram laços de uma história comum de encontros e desencontros. Depois surgiu um projecto de cidadãos do mundo que é a CPLP.

Sucede, porém que o mundo multipolar de hoje não é mais o do passado. O corte de gerações, o desaparecimento de bibliotecas de memória de quem tomou parte nas lutas cúmplices contra a ditadura, as mudanças geopolíticas a que assistimos e o atual capitalismo de casino, são realidades novas. Há, todavia, que ter presente que os povos e países da CPLP continuam a ser uma mais-valia insubstituível e todos devem ter dela consciência:

  • Falam a 4.ª língua do mundo, utilizada em 32 organizações internacionais, sendo a 1.ª do Atlântico Sul.
  • Fazem fronteira com o mar, sendo portas de entrada para os continentes em que se integram ou para importantes regiões deles.
  • Detêm cerca de 13,5% da água potável do mundo, 5,9% da terra arável, 3,7% da população e contribuem com 3,9% para o comércio mundial.
  • Cruzaram culturas com invulgar dimensão, na música, na literatura, na gastronomia e na língua.

A intervenção da troika em Portugal debilitou, porém, instrumentos de soberania, desrespeitou princípios e descredibilizou a própria política e isso teve consequências graves na política de cooperação. A venda da quase totalidade das empresas estratégicas, desde a distribuição postal, aos aeroportos, à energia, à distribuição desta e às telecomunicações, passando pela banca e seguros, decapitaram alavancas da cooperação e enfraqueceram a afirmação de Portugal no mundo. Portugal teve cerca de 90% do domínio nacional da banca e quase o mesmo nas empresas seguradoras e agora detém cerca de 8%. Acresce que o debate recente dos tribunais nas relações internacionais reflete a debilidade do Estado.

Este exemplo, como o da entrada de um novo país para membro fundador da CPLP ou a decisão salomónica de dividir um mandato de quatro anos para dois do Secretário Executivo quando Portugal o devia ocupar por quatro, foram lesivos de princípios. É preciso agora uma política inovadora, incluindo económica, assente nas PME’s e na língua portuguesa conduzindo à criação de um banco lusófono para o desenvolvimento com uma COSEC também lusófona reforçada.

Refletir em tudo isto significa:

  • – Articular a ação da CPLP com as políticas de cooperação do poder autárquico, sendo que muito em breve mais de 70% da população mundial viverá nas cidades.
  • – Valorizar o intercâmbio da cultura com simplificação de vistos para artistas, escritores e agentes dela, estendendo-a a docentes e investigadores universitários e implementando um modelo adequado para estudantes, num caminho gradual de mobilidade, sentida pelos cidadãos.
  • Privilegiar o apoio na saúde e na educação com o contributo de instituições e de profissionais destes setores, por excelência veículos de afirmação da língua portuguesa.
  • Reforçar a disponibilização do acervo documental sobre os países africanos existente em instituições portuguesas.
  • Conjugar esforços para que técnicos agrícolas, da pecuária e pescas concorram para a recriação do setor primário nos países africanos e para a autossuficiência destes, consciencializando as instâncias internacionais para o papel que todos devem ter na defesa do Atlântico Sul.
  • Reganhar para Portugal na UE um estatuto privilegiado no relacionamento com os países da CPLP.

O desafio é um desígnio nacional. Para que se concretize há que consensualizar objectivos, concertando os instrumentos existentes para que estes lhes respondam sem desperdício. Portugal depende muito das relações lusófonas para o futuro e este, no quadro do novo mundo, começa agora.

A visita do PR a Angola, que por razões endógenas e exógenas vive um período difícil de transição, é uma excelente oportunidade para se iniciar uma política inovadora, perante contornos geopolíticos à escala mundial, também estes inovadores e que estão agora apenas no início da gestação do futuro. Essa gestão tem ameaças sérias. Essa gestação tem ameaças sérias para a lusofonia.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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