Sai uma bica e uma tigelada

Da pastelaria, a minha avó não trazia só a tigelada. Trazia também as novidades da vizinhança e a alegria de ver e ser vista.

A minha avó era muito gulosa. Morou quase toda a vida numa rua muito íngreme, ao Príncipe Real, e mesmo quando já lhe custava, lá subia até à Escola Politécnica para beber a bica, comprar um queijinho fresco e um doce. Podia ser uma queijada ou, mais raro, um pastel de nata. Na maior parte das vezes trazia para casa uma tigelada, que dividia em pequenas fatias, talvez na esperança de que ela durasse algum tempo – mas geralmente desaparecia em meia hora.

Na Rua da Escola Politécnica havia três pastelarias em 500 metros, mas a proximidade parecia não ser prejudicial para nenhuma, pois todas tinham os seus indefectíveis, os que iam a uma diferente todos os dias, os que caíam de pára-quedas para um café e não voltavam. Os três estabelecimentos estavam até mais ou menos coordenados no dia de descanso, de modo que não havia um dia da semana em que não houvesse pastelaria aberta.

Uma das três pastelarias fechou há cerca de um ano. Era a Alsaciana. Apercebi-me do seu encerramento por acaso, quando andava por ali a fazer reportagem. Não houve notícias nos jornais, indignações nas redes sociais ou pronunciamentos políticos. A Alsaciana fechou discretamente e no seu lugar abriu entretanto um restaurante moderno.

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Sebastião Almeida

Era uma jóia arquitectónica? Nem por sombras. Tinha aqueles balcões de vidro e metal, mosaicos brancos e cor-de-rosa nas paredes, semelhantes aos de casas-de-banho, um painel de azulejos com cegonhas e pastores alemães, uma montra pobrezinha também com um painel de azulejos representando uma mulher (a alsaciana), um toldo igual a milhares de outros. Era uma casa centenária? Não. Tinha algum produto extraordinário que só se fabricasse ali? Também não.

À primeira vista, a Alsaciana não preenchia nenhum dos critérios para ser considerada uma “loja histórica”, aquelas que agora gozam de alguma protecção no arrendamento e podem ter apoios para dinamizar o negócio. Era apenas uma normal pastelaria lisboeta. Um sítio onde se podia tomar um café, comer um bolo ou almoçar uma alheira. É coisa que começa a ser extraordinária, nesta cidade que se transforma a um ritmo alucinante. Será que a banal pastelaria de rua é uma espécie em vias de extinção?

Numa cidade como Lisboa não há nada mais natural do que os negócios abrirem e fecharem, entusiasmando quem os apanha ao princípio e, em alguns casos, decepcionando quem assiste ao seu fim. Neste momento da nossa vida colectiva, os cafés sofisticados com mobiliário minimalista, os restaurantes com “conceito” e os bares “fora da caixa” são os estabelecimentos em voga. E não há mal nenhum nisso, porque apareceram por aí muito boas surpresas (também muitos barretes). Talvez daqui a uns anos a maré mude e haja quem suspire contra o desaparecimento destes sítios, substituídos pelo que então estiver na moda.

Mas, pelo meio, desaparece uma mão-cheia de cafés, pastelarias, restaurantes e bares que, não sendo “lojas históricas”, não fazendo parar o mundo, são sítios de dia-a-dia, que prestam um serviço precioso, até de coesão social. Da pastelaria, a minha avó não trazia só a tigelada. Trazia também as novidades da vizinhança e a alegria de ver e ser vista. De certa forma, o fecho desse comércio representa uma mudança na maneira como se vive a cidade. Será que, em breve, todos os estabelecimentos deste tipo serão “históricos”, tal a sua raridade? Ou ficarão apenas confinados à memória dos que lá foram ou dos que ouviram dizer?

Às vezes, o que apetece mesmo é ir a uma pastelaria normal, beber uma bica e pedir uma simples tigelada. Até se pode cortar em fatias pequenas, como fazia a minha avó. Mas não garanto que durem muito – ela não era a única gulosa da família.

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