Arquivo morto/arquivo vivo

A memória, assunto nosso de cada dia no teatro, se bem que em cena estejamos sempre no seu presente, não é um esquema refém nem da nostalgia nem de uma convocação que a remeta para onde supostamente está.

A tendência coleccionadora não é exemplo de pulsão criadora, talvez o contrário. E também não o é de um exercício útil da memória, isto é, da sua convocação para que o que vem de trás diga coisas ao presente, nomeadamente que este não está a inventar nada de radicalmente novo no seu último momento - justamente em nome da última novidade que corre atrás da penúltima novidade, novíssima e sempre muito criativa, sempre assim nomeada, mesmo que a correr. O arquivo morto é uma acumulação de dados que está armazenada e que se vai armazenando, enchendo de pó - mas que é cinza, cinza que não necessita de um fogo prévio. E só deixa de ser isso quando 1) não é morto, quer dizer, não é parte de uma acumulação que segue o empilhamento como critério único, uma arrumação, como os arquivistas mortos fazem e gostam de fazer, por vezes compulsivamente – muitos têm esse prazer de limpar com o pano do pó a rosa de plástico na sepultura arquivo, 2) e está vivo, é convocado por estar vivo, por ser mais que uma peça numa lista com dados de identificação, etiqueta no cadáver.

A memória, assunto nosso de cada dia no teatro, se bem que em cena estejamos sempre no seu presente, não é um esquema refém nem da nostalgia – que é uma forma de prazer sensível ou de desprazer sensível, a coisa que não volta e trás lágrima – nem de uma convocação que a remeta para onde supostamente está. Se a historicização é uma das técnicas do estranhamento – os tempos mudam -, a convocação de tempos diferentes da memória para o nosso presente no presente da cena é uma forma de atirar ao espírito achas alimentares para inventar uma outra cadeia de futuro – isto anda tudo muito quente.
Pois, não é o flashback é a vivificação, um modo de tornar vivo o que estava “morto” porque gera energia na tensão entre uns e outros, cena sala, entre os actores em cena, entre os espectadores na sala. É esse o modo como Crimp pratica As fenícias de Eurípedes em O resto já deves conhecer do cinema, recriação da primeira. Entre o mito e a história, a força ficcional, tramada, do mito e as carnificinas do humano, erro que “corrige” o erro anterior, como marcha da história – a sua incidência faz-se no nosso presente. Nesse da cena que as pessoas dessa noite – comunidade única e instante – partilham e num outro, a actualidade – a contemporaneidade mais a sua última pele, um tal presente – agora o dos populismos, que já tem uns tempos e que ainda há pouco era o do ultraliberalismo, ou neoliberalismo - serão o mesmo, ou a teoria do pior depois do mau até à catástrofe final é verdadeira? Na realidade, por efeito de uma espiral de comunicação verdadeiramente incontinente e sempre em maré de cheia, fluxo entrópico – como se diz de um rio que ultrapassa as margens -, a convocação do passado, sendo qualificada e selectiva, colocada em estado de “citação” que vivifica porque cria movimento enérgico quando é “semeada”, em cada momento, pode, de facto, contra a corrente, como anti-fluxo, falar do que já não e possível dizer no “fluxo” – o que é dito vai na voragem.
A via é essa, a da suspensão do tempo, o que o teatro faz convocando cada noite uma assembleia específica – a sua génese não massiva, e as características presenciais da comunicação e dos trânsitos enérgicos – e certamente a qualidade da ficção - fazem o resto. E esse “resto” é substantivo. O resto já devem conhecer do cinema, uma realização comum do Teatro da Rainha e do TNSJ estreia no próximo 27 de Março, na Praça da Batalha, Porto.

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