O novo analfabetismo

Um jovem português está em prisão domiciliária, em Budapeste, aguardando uma decisão judicial, por ter entrado nos sistemas informáticos de um clube e de um escritório de advogados, pirateando milhares ou milhões de documentos relativos aos negócios do futebol. E, segundo foi noticiado, a sua extraordinária competência de hacker foi também usada com sucesso numa transferência bancária, para a sua conta, de um offshore, situado num paraíso fiscal. Julgo, tenho a certeza, que quase todos nós, por mais firmes que sejam os nossos princípios morais e sem vacilações na nossa honestidade, vemos em primeiro lugar a operação prodigiosa e só depois, a alguma distância, a acção criminosa. Perante uma tal expertise, inclinamo-nos com alguma reverência, mesmo que não tenhamos qualquer ambição de chegar a tão alto nível do conhecimento cibernético. A verdade é que, exceptuando uma elite, a grande maioria dos utilizadores dos computadores e de todos os aparelhos de inteligência artificial se encontra numa situação de analfabetismo, mesmo quando tem treino suficiente para se mover com desenvoltura no mundo informático e executar todas as operações de que necessita. Uma elite detentora de um saber hermético projecta modelos de conhecimento e usa códigos e mecanismos de programação que todos nós aprendemos a seguir, mas não os sabemos ler. Continuamos enredados nas categorias para as quais fomos programados. Ao nosso analfabetismo podemos chamar “crise da programação”. Foi esse o nome que lhe deu um visionário chamado Vilém Flusser (1920-1991).

Foi um teórico da “civilização dos media”, nascido em Praga, que viveu grande parte da sua vida no Brasil. Ele atribui a “crise da programação” a uma evolução no tipo de objectos mediáticos que circulam na nossa época. Na sua explicação desta crise, ele opõe um período “histórico”, ao longo do qual a comunicação era dominada por mensagens alfabéticas, compostas por letras dispostas em cadeias lineares, formando frases articuladas por uma certa lógica, a um período “pós-histórico”, aquele em que estamos a viver, caracterizado por um desenvolvimento cada vez mais forte de comunicações baseadas em tecno-imagens que nos deixam imersos num universo mediático muito diferente daquele que funcionava segundo o regime dos discursos alfabéticos e do logos que lhe corresponde. As tecno-imagens, na definição de Vilém Flusser, são audiovisuais e não linguísticas, são mais sensíveis do que lógicas, e opõem-se tanto aos textos lineares quanto às imagens tradicionais. Com uma sensibilidade sismográfica, Flusser percebeu uma coisa que entretanto ganhou uma enorme evidência: que as gerações mais jovens, já não completamente alfabetizadas, como tinham sido as gerações anteriores, estavam em vias de conquistar este novo território, passando da história à pós-história.

Do pensamento de Flusser sobre esta nova civilização dos media decorre a ideia de que vivemos uma dupla crise: uma crise do analfabetismo e uma crise do futuro. Neste sentido, analfabeta é precisamente a geração alfabetizada, mas que nunca conseguirá sentir que o seu habitat natural é este  mundo das tecno-imagens, caracterizado por mecanismos de programação: programação das próprias imagens e programação dos espectadores e dos produtores destas imagens. Quanto à crise do futuro, ela revela-se, segundo o diagnóstico de Flusser, na nossa incompetência para as operações que os hackers, figuras da pós-história, executam; e revela-se no modo como os novos aparelhos foram inventados para funcionar automaticamente, sem a intervenção humana. Assim, o homem começa a ficar fora do circuito. E a nossa relação com as gerações futuras é marcada pela descontinuidade, por um hiato. E, imersos no “presentismo” e sujeitos à lógica da aceleração, é a própria categoria de futuro que perde a sua antiga validade. A crise do futuro tem a ver com a nossa dificuldade em projectar-nos — em projectar a nossa humanidade — num tempo à nossa frente. Daí que tenham também desaparecido as responsabilidades intergeracionais, uma condição que tem dado azo a que se anunciem lutas entre gerações, em substituição da lutas de classes.

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