Gravuras de 26 artistas criam leitura visual da poesia de Al Berto

A pretexto da tradução italiana de Horto de Incêndio é esta quinta-feira inaugurada em Roma uma surpreendente exposição de 26 artistas portugueses que usaram as técnicas da gravura para imaginar o mundo a que Al Berto deu voz.

Trabalho de João Jacinto a carvão, pastel seco e tinta spray sobre papel
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Trabalho de João Jacinto a carvão, pastel seco e tinta spray sobre papel António Jorge Silva
Desenho a grafite de Luis Manuel Gaspar
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Desenho a grafite de Luis Manuel Gaspar MArt
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Notas para o diário, uma das séries criadas por Francisca Carvalho António Jorge Silva
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Alexandre Conefrey (autor dos trabalhos que estão sobre a mesa), Ana Natividade e João Queiroz MArt
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Federico Bertolazzi MArt
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João Jacinto trabalhando numa das séries que realizou para Orto di Incendio MArt
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Ciprestes, um trabalho de André Almeida e Sousa António Jorge Silva
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Uma das duplas páginas da série Onde o tempo não foi inventado, de Ana João Romana MArt
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Um dos trabalhos da série Orto di Incendio, de Ana Natividade MArt
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Como as orquídeas,de Carlos Corais António Jorge Silva
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Trabalho de Frederico Pratas em água-tinta de açúcar e água-tinta de sabão António Jorge Silva
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Um trabalho de Constança Arouca feito a cinzel e ponta seca António Jorge Silva

A colectiva Orto di Incendio: 26 Artisti Portoghesi su Al Berto, que se inaugura esta quinta-feira à tarde no prestigiado museu do Istituto Centrale per la Grafica, em Roma, herdeiro da antiga oficina papal de impressão e gravura, reúne um extenso conjunto de trabalhos criados por artistas portugueses a partir da poesia de Al Berto (1948-1997) e, em particular, do seu último livro, Horto de Incêndio, publicado no ano da sua morte.

Uma exposição invulgar com uma origem também ela algo improvável. Federico Bertolazzi, professor de literatura portuguesa na Universidade de Roma Tor Vergata, e que vive hoje entre Lisboa e a capital italiana, é um admirador da poesia de Al Berto, que levou para as suas aulas, tendo acabado a traduzir Horto de Incêndio com um dos seus alunos, Claudio Trognoni. Após um longo pousio, o livro acabou por ser acolhido pela editora Passigli, mas Bertolazzi sentia que os leitores italianos, que não conhecem o poeta português nem a sua relação com as artes plásticas, que Al Berto estudou e praticou antes de se dedicar mais exclusivamente à escrita, teriam a ganhar em ler a sua poesia acompanhada de um “contexto visual”. Convidou então Ana Natividade, que dirige a oficina de gravura da MArt, em Lisboa, para organizar uma exposição em torno de Horto de Incêndio, que fosse concebida “não em termos de ilustração, mas de elaboração estética sobre o universo de Al Berto”, conta o investigador.

Se a artista terá encarado com naturalidade o conceito da exposição, já que o mundo das imagens e o das palavras lhe são igualmente familiares – à formação em arquitectura, pintura e gravura, soma estudos de literatura moderna e contemporânea –, restava-lhe ainda assim uma opção a tomar, que enuncia nestes termos: “ou escolhia artistas relacionados com o Al Berto ou trazia o Al Berto para a vida diária da nossa escola”.

Tivesse seguido o primeiro caminho e “até teria um guião perfeito n’A Secreta Vida das Imagens”, observa Bertolazzi, referindo-se ao livro de 1991 no qual Al Berto dialoga poeticamente com obras da pintura antiga e contemporânea, de Giotto e Zurbarán a Klee e Beuys, mas também com os artistas portugueses de quem se sentia mais próximo.

Ana Natividade preferiu, todavia, a segunda hipótese. Convidou 26 artistas, consagrados e emergentes, alguns que têm na gravura a sua técnica de eleição e outros que nunca a tinham praticado, professores das várias valências da MArt, como Paulo Brighenti, André Almeida e Sousa ou ela própria, mas também alunos da escola. Se alguns trabalharam em casa, a maior parte passou a frequentar a oficina, cruzando-se diariamente com os alunos da MArt – instalada na Escola Básica Manuel da Maia, em Campo de Ourique –, num ambiente de informalidade, experimentação e entreajuda.

Num texto que escreveu para o caderno que acompanhará a exposição que esta quinta-feira se inaugura em Roma, Ana Natividade regozija-se por este projecto ter também estimulado alguns artistas a voltar à gravura, como João Queiroz, que, lembra, tinha feito “a sua última ponta-seca nos anos 80”.

Alexandre Conefrey, Ana João Romana, Carlos Corais, Francisca Carvalho, Frederico Pratas, João Jacinto ou Luis Manuel Gaspar são outros artistas representados, sendo que o último já não teve tempo de criar uma gravura a partir do demorado desenho que fez de Al Berto, de modo que será exposto apenas o desenho, inspirado num verso do poema Horto: “com a voz atada por uma corda de lírios”.

Sendo a produção de múltiplos habitual na gravura, Ana Natividade propôs aos artistas que fizessem séries de dez obras. “Alguns fizeram múltiplos, outros optaram por variações, outros criaram dez obras completamente diferentes”, diz. Daí que as colecções com uma obra de cada artista que ficarão nas instituições envolvidas, como a MArt, o Istituto Centrale per la Grafica ou a Gulbenkian, um dos patrocinadores do projecto, “serão todas diferentes umas das outras”, observa.

A exposição, que será mostrada em Novembro no Museu do Chiado, em Lisboa, onde se manterá até Fevereiro de 2020, “é uma homenagem livre e apaixonada a um poeta que marcou com força a cena literária e artística do seu país”, resume Bertolazzi no breve texto que redigiu para a inauguração de Orto di Incendio em Roma. Al Berto, escreve ainda, “conseguiu dar corpo a uma inquietação partilhada por muitos, e as suas palavras encarnaram uma espécie de grito colectivo que, partido das entranhas do ser, ousou erguer-se contra a morte”.

O investigador, que prepara neste momento um volume com os textos dispersos de Sophia de Mello Breyner Andresen, a publicar pela Assírio & Alvim, justifica a sua escolha de traduzir integralmente Horto de Incêndio, em vez de organizar, por exemplo, uma antologia de Al Berto, com a sua convicção de que o poeta “atinge neste livro uma maturidade e uma serenidade que lhe dão uma clarividência muito grande”. 

Considerando que o livro funciona como uma súmula de toda a obra, e que “é muito forte do ponto de vista visual”, Federico Bertolazzi conclui: “O Al Berto sempre mediu a distância que o separava da morte, e é como se neste livro ele encontrasse uma espécie de sossego, uma solução para esse problema que é ter a morte sempre debruçada nos seus versos”.

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