A educação do cão

O Cabecinha, se calhar, nunca tinha provado comida portuguesa. Achou-a deliciosa. É até provável que não tivesse fome: eram as iguarias que eram irrecusáveis.

Apareceu-nos um cão grande e lanudo com uma cabeça pequena. A desproporção era tal que parecia mal desenhado, ou melhor, uma colagem em que uma criança entediada tinha colado uma cabeça de um yorkshire terrier no corpo de um pastor inglês.

Era bem educado. Não chateava. Não pedia. O Cabecinha até dava a pata a quem a pretendesse. Será que tinha fome? Nós estávamos a comer barriga de atum à marinheira: eu com bróculos, a Maria João com feijão frade.

Demos-lhe atum. Desapareceu. Mais atum. Zuca. Finalmente todo o atum. Nunca vi um cão comer tão depressa. Era mais ilusionismo do que alimentação.

E os brócolos? Fomos ver se fazia mal. Não fazia. Toca de lhe servir os brócolos. O Cabecinha ainda gostou mais dos brócolos do que do atum. Terá sido a surpresa do tempero? Agora só restava o feijão frade. Também marchou, embora tivesse mostrado uma primeira hesitação antes de passá-lo ao estreito.

Ouve-se um grito. O cão estremeceu de medo. Era a dona — uma senhora estrangeira — a chamar por ele. Gritou-nos: “Sorry!” Estava zangada. O Cabecinha, até aí tão calmo e civilizado, desatou a correr para a tutela. Passa-se o mesmo com algumas crianças: longe dos pais são calmas e pensativas, óptima companhia. Chegam os pais e começam a portar-se mal.

Uma coisa é certa: o Cabecinha, se calhar, nunca tinha provado comida portuguesa. Achou-a deliciosa. É até provável que não tivesse fome: eram as iguarias que eram irrecusáveis. Ou então só comeu o que nós lhe demos por educação — e detestou. Nunca saberemos. 

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