Espanha e França isolam Portugal na exportação de gás para a Europa

Os reguladores espanhol e francês chumbaram a interligação de gás natural entre os dois países através dos Pirenéus, que era condição para a construção da terceira ligação com Espanha, que permitiria a Portugal exportar gás natural para a Europa.

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Portugal é abastecido de crude e de gás natural através do porto de Sines Miguel Manso

O regulador espanhol dos mercados e concorrência (CNMC) e o regulador francês da energia (CRE) rejeitaram a construção da interligação de gás natural entre Espanha e França, através dos Pirenéus, por considerarem não só que se trata de um projecto com encargos elevados e poucos benefícios para os consumidores dos dois países, mas também que a capacidade de interligação existente não está esgotada.

A realização deste projecto, que está na agenda há anos e foi considerado prioritário por Bruxelas (o comissário com a pasta da energia, Arias Cañete, é um dos seus defensores) era uma das condições para que a REN construísse também um novo gasoduto de 115 milhões de euros até Espanha através de Trás-os-Montes (já há dois, com ligação por Campo Maior e Valença do Minho)​.

Na decisão conjunta, os reguladores explicam que o projecto de investimento proposto pelos operadores de rede Enagás (Espanha) e Teréga (França) na sua “configuração e capacidades actuais (…) não cumpre com as necessidades do mercado e tem falta de maturidade” para ser aprovado e haver repartição de custos entre os consumidores espanhóis e franceses (um custo total de 442 milhões de euros, com a maior factura em França, de 290 milhões).

Esta decisão lança novas incógnitas sobre o projecto português, bem como sobre a ambição já afirmada pelo primeiro-ministro António Costa (mas herdada do Governo de Passos Coelho) de que Portugal se torne, através do terminal de gás natural liquefeito (GNL) de Sines, uma entrada do gás norte-americano na Europa, em alternativa ao gás russo. Um argumento que passou também para o discurso político em Espanha, onde existem sete terminais de GNL e onde se assumiu que o gasoduto transpirenaico era uma peça-chave da estratégia para construir um novo corredor de gás a partir do sul da Europa.

O desenvolvimento de infra-estruturas de transporte, armazenamento e importação de gás foi mesmo um dos compromissos vertidos na declaração assinada por Portugal, Espanha e França na cimeira tripartida que se realizou em Julho, em Lisboa. Embora António Costa tenha sublinhado, na altura, que "não construiremos gasodutos a não ser que o consumo de gás na Europa continue a ser importante e maciçamente utilizado para substituir as centrais a carvão”.​ 

Por cá, os planos de construir um gasoduto para criar o corredor Portugal - Espanha - França esbarrou sempre nas reservas do regulador da energia (a ERSE), precisamente por causa do impacto nas facturas do gás natural, tendo em conta a subutilização das infra-estruturas existentes, as incertezas relativas à evolução futura do consumo e ao compromisso de espanhóis e franceses com o projecto.

Por isso, na última proposta de plano de investimentos da REN na rede de transporte de gás (o PDIRGN) submetida à ERSE, a construção da ligação Celorico da Beira/Zamora ficou condicionada “à decisão de realização” da primeira fase da interligação via Pirenéus, conhecida anteriormente como “Midcat” e baptizada entretanto como South Transit East Pyrenees (STEP).

Decisão de política energética

O gasoduto foi apresentado pela REN como um projecto de investimento complementar, justificado com a “necessidade de criação das condições requeridas para o cumprimento das orientações de política energética, em linha com os compromissos assumidos pelo Estado concedente”.

Depois de o trajecto ter recebido parecer negativo por atravessar paisagem do Alto Douro Vinhateiro (inscrita na lista do Património Mundial da UNESCO), a REN e o Governo estavam a discutir um traçado alternativo. Agora, com a decisão da CNMC e da CRE cresce a incerteza sobre o seu futuro.

Para a REN, são más notícias, porque a empresa é remunerada em função da sua base de activos regulados e ganha mais (nas tarifas) quanto maior for esta base. O PÚBLICO perguntou à REN se vai retirar a interligação da lista de Projectos de Interesse Comum (PIC), que são elegíveis para financiamento do Mecanismo Interligar Europa, mas não foi possível obter um comentário. Também não foi possível obter um comentário do gabinete do secretário de Estado da Energia.

O PÚBLICO sabe, no entanto, que a concessionária e o Governo estão a trabalhar num novo PDIRGN para ser apresentado até 31 de Março. Além do seu impacto na dinamização do terminal de Sines, o novo gasoduto tem sido defendido também como uma forma de integrar o mercado ibérico com o europeu, aumentando a concorrência.

Em todo o caso, as exportações portuguesas de gás natural já são uma realidade desde Outubro, embora fiquem confinadas à ibéria. E ontem a REN anunciou que o sistema nacional exportou pela primeira vez através da interligação de Campo Maior no dia 10 de Janeiro. “Nesse dia, o fluxo total de gás no VIP Ibérico (ponto virtual que agrega as capacidades das interligações internacionais) para abastecimento do sistema espanhol foi de aproximadamente um milhão de metros cúbicos, tendo sido quase totalmente transportados pela interligação de Campo Maior”, revelou a empresa.

“A forte competitividade” de Sines e “o evento de uma vaga de frio na Europa, e em particular em Espanha, têm levado a que o mercado recorra ao sistema nacional como porta de entrada na Europa”, afirmou a REN, sublinhando que “este evento é um sinal claro de como a competitividade do sistema português, aliada à sua localização geográfica marítima, pode vir a constituir um ponto de entrada relevante para a Europa sobretudo em situações de picos de consumo”.

A empresa lembrou que a interligação de Campo Maior permitiu a introdução do gás natural no mercado nacional em Janeiro de 1997 (trazendo o gás da Argélia) e que só mais tarde, em 2004, entrou em serviço o terminal do porto de Sines (para receber os navios provenientes da Nigéria).

Apesar de Sines ter uma localização privilegiada na fachada Atlântica, Espanha tem sete terminais de GNL e França tem outros quatro, pelo que qualquer um destes Estados pode ambicionar o estatuto de fornecedor europeu, sem servir de intermediário ao gás proveniente de Portugal.

Demasiados custos, poucos benefícios

O projecto de gasoduto entre a Catalunha e o sul de França também está inscrito na lista de projecto PIC e, embora a sua relevância tenha sido reconhecida pela Comissão Europeia como parte da estratégia de segurança do abastecimento europeu, os reguladores duvidam que os benefícios da sua construção possam superar os custos que vão imputar aos consumidores franceses e espanhóis.

A CNMC e a CRE reconhecem que a concretização do mercado interno do gás é uma prioridade da política energética europeia, que a Península Ibérica é uma das regiões que “tem um nível relativamente limitado de interconexão com o resto do mercado europeu” e que é preciso prosseguir esforços para uma maior integração dos mercados de electricidade e de gás do sudoeste europeu”. Ainda assim, entendem que não só os testes realizados demonstraram que “não há interesse comercial na nova capacidade de interconexão”, como “o custo do projecto é elevado em comparação com os standards europeus”.

Também referem que o projecto não garante “capacidade firme de interligação” que possa ser contratada pelo mercado (porque pode ser interruptível) e que “a actual capacidade de interligação de gás entre França e Espanha não está congestionada”.

De uma forma geral, as entidades reguladoras concluem que “as análises de custo-benefício do projecto não demonstram claramente que os benefícios superam os custos nos cenários mais prováveis” e, por isso, rejeitam o pedido de autorização de investimento e “recomendam aos operadores da rede de transporte avaliações adicionais sobre este PCI”.

Estas avaliações deverão demonstrar se o custo-benefício do projecto “é claro e positivo no futuro”, tendo em conta elementos como o papel futuro do gás na região após a aprovação do recente pacote de energia limpa acordado a nível europeu ou o interesse dos agentes de mercado por capacidade adicional na fronteira franco-espanhola, refere a decisão.

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