Um boi é meia pessoa

Quarenta anos de história da China contemporânea contemplam-nos do âmago do primeiro romance de Yu Hua.

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Sendo feita a narração do ponto de vista de um camponês pobre, a impiedosa indiferença que o suposto sentido da História costuma manifestar pelos destinos individuais torna-se ainda mais vertiginosa e pungente MASSIMO DI NONNO/GETTY IMAGES

No livro China em Dez Palavras, colectânea de textos ensaístico-memorialísticos escritos em 2009 — o primeiro dos quais tendo sido publicado em The New York Times para assinalar os vinte anos transcorridos sobre o massacre de Tiananmen —, Yu Hua (n. 1960) comenta assim o encontro que tivera no ano anterior com um enviado daquele jornal norte-americano a Pequim para entrevistá-lo: “Parecíamos dois pescadores de memórias, sentados junto ao rio do tempo à espera que o passado se prendesse no anzol.” A imagem é bastante apropriada para descrever a estrutura, de uma simplicidade estonteante, de Viver, o primeiro romance publicado pelo escritor chinês, em 1993. O narrador começa por explicar-nos que ouvira, dez anos antes, a história que nos vai ser contada. Havia arranjado “um trabalho muito agradável, em que tinha a função de percorrer os campos e as aldeias para recolher canções populares” (p. 7) — e não podemos deixar de recordar como, no volume de memórias e ensaios acima referido, o autor alude à inveja que sentia da vida folgada dos “funcionários do departamento cultural” da pequena vila do sul da China em cujo hospital passou cinco anos a arrancar dentes, antes de se tornar escritor a tempo inteiro. Sentado à sombra de uma árvore, numa certa tarde, o narrador observa um velho camponês incitando um boi a trabalhar a terra. Interpela-o. O velho, chamado Fugui, conta-lhe a sua história. A história que iremos ler, na primeira pessoa do singular.

Delegada a narração, o nosso recalcitrante primeiro narrador só episodicamente reaparecerá, nomeadamente no final, para uma observação que não desmerece aquela espécie de naturalismo escatológico que é frequente no segundo narrador e protagonista (e também no próprio autor): “Um homem passou por mim, a carregar um balde de fezes que rangia pelo caminho.” (p. 183) No início do livro, mal começamos a ler a voz de Fugui — que recua até ao tempo em que a sua família “ainda não tinha caído em desgraça”, quarenta anos antes —, somos testados pela maneira como recorda o pai: “Era uma pessoa com grande estatuto, mas não se distinguia dos pobres quando chegava a hora de cagar. Ele não gostava de cagar em casa, na bacia junto à cama, e preferia fazê-lo ao ar livre, como os animais. No momento em que se aproximava a noite, soltava um arroto, que lembrava uma rã, saía de casa e ia calmamente até à fossa da entrada da aldeia. […] Quando a minha filha Fengxia tinha três ou quatro anos, costumava correr atrás do meu pai para o ver a cagar.” (p. 11)

Assim, e talvez subsumida pela oralidade do relato (da qual o livro é apena uma sua fixação escrita), a linguagem é chã, objectiva e não menos violenta do que o mundo, e a narração é cronológica e linear. Também podemos, contudo, optar pela justificação bem-humorada que Yu Hua deu em China em Dez Palavras, ao dizer que os anos passados na escola primária e na secundária, coincidentes com a Revolução Cultural, tinham sido “um desperdício de tempo” do ponto de vista académico: “[…] quando comecei a escrever não dominava um número muito extenso de carateres”. Quando, mais tarde, “vários críticos literários elogiaram a linguagem forte e concisa” dos seus textos, o escritor dizia: “Isso é porque não conheço muitos carateres.” E quando lhe disseram que, traduzida para inglês, a linguagem dos seus livros lembrava a de Hemingway, Yu Hua respondeu: “Hemingway também não conhecia muitas palavras inglesas.”

Como quer que seja, Fugui conta-nos a sua vida e a da sua família, num lugarejo do sul da China, entre o início da década de 40 do século XX e o início da década de 80 do mesmo século. Isto é, conta-nos a história da própria China no intervalo de tempo que vai da invasão japonesa, da guerra civil e da subsequente chegada ao poder de Mao (no filme que Zhang Yimou realizou em 1994 a partir do livro de Yu Hua, com a colaboração do próprio autor, a ruptura histórica é dada pelo plano memorável no qual uma baioneta rasga a tela em que se projecta o teatro de sombras manipulado pelo então jovem Fugui) até ao fim da Revolução Cultural, passando pelo Grande Salto em Frente de finais dos anos 50. “A revolução não é um convite para jantar”, dizia o vetusto Presidente Mao, como tantos e tão ilustres portugueses certamente recordarão. Assim, e embora o pathos da narração não menospreze uma certa efusão melodramática de que nos desabituámos, no Ocidente, a violência testemunhada e padecida por Fugui não é nem retórica nem simbólica, sobretudo a que é enquadrada pelo cataclismo da Revolução Cultural e pela excruciante e massiva fome do início da década de 1960. Sendo feita a narração do ponto de vista de um camponês pobre, a impiedosa indiferença que o suposto sentido da História costuma manifestar pelos destinos individuais torna-se ainda mais vertiginosa e pungente.

Cai a noite e o solitário velho afasta-se na companhia do seu animal de trabalho: “Um boi é meia pessoa, pode trabalhar por mim e, quando descansamos, faz-me companhia. Se ando chateado ou triste com alguma coisa, posso falar com ele.” Faz contas ao passado: “O melhor que nos pode acontecer é levar uma vida tranquila.” E vai cantando: “Em novo, fazer viagens, / Em adulto, buscar fortuna, / Em velho, vida de monge.” A vida de Fugui, curiosamente, começara por ser uma romanesca ilustração daquele anexim que diz que há males que vêm por bem. Tendo, na sua boémia juventude, perdido ao jogo a rica herança familiar, o comunismo triunfante identifica-o como camponês pobre, assim se livrando de ser fuzilado, destino que coube ao jogador que lhe ficou com as terras. Há neste episódio ecos autobiográficos, pois algo de semelhante terá ocorrido na família do escritor.

Aliás, é possível constatar a recorrência de um certo número de temas e acontecimentos na obra de Yu Hua, tanto na ficcional como na ensaística. Por exemplo, e tendo-se oferecido para dar o sangue necessário para salvar a mulher do chefe local do Partido, o filho de Fugui virá a morrer exangue, literalmente (no filme de Yimou a causa da morte é outra). Retomado e expandido no romance Crónica de Um Vendedor de Sangue, de 1996, publicado há dois anos em Portugal, o motivo transforma-se em tema — o comércio de sangue. Não deveremos terminar sem relevar que os três livros de Yu Hua publicados em Portugal foram traduzidos, a partir dos originais chineses, por Tiago Nabais, e sem sublinharmos a importância cultural deste empreendimento da editora Relógio D’Água, que prevê a publicação de outros autores chineses contemporâneos.

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