Com o fim à vista, a Ulmeiro lutou e renasceu: voltará a publicar

Parada desde 2010, a Ulmeiro de José Ribeiro volta às publicações para assinalar os 50 anos de actividade. Depois da tormenta, os ventos da bonança parecem ter chegado à editora de Benfica.

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Nuno Ferreira Santos

No ano em que a Ulmeiro celebra meio século de vida, os ares que se respiram na livraria de José Ribeiro, na Avenida do Uruguai, em Lisboa, estão renovados. O livreiro e editor de 75 anos diz-se com “outro estado de espírito”. A Ulmeiro voltará à edição e a primeira obra será publicada em Fevereiro. Depois disso, seguir-se-á uma exposição comemorativa dos 50 anos da editora, na Fábrica do Braço de Prata, e o lançamento de uma revista literária.

Em 2019, assinala-se também o regresso à publicação de plaquetes literárias (um panfleto desdobrável com pequenos textos de autores) e a dinamização de uma “programação cultural viva”.

José quer que este seja o “ano da consolidação”. Depois de um período conturbado em que anunciou o encerramento da Livrarte por diversas vezes — a livraria que se confunde com a editora Ulmeiro —, um dos poucos livreiros que resiste na capital apresenta-se de cara lavada e com muitos projectos debaixo do braço.

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A transformação da Ulmeiro em associação cultural, confessa, “alterou um pouco a realidade das coisas”. Neste momento, o espaço caminha para os 200 associados e esse número permite cobrir custos fixos. Mas o que motivou José a manter as portas abertas foram os 50 anos de intensa actividade literária. Para o também editor, o regresso à publicação é “parte da resolução do problema”, já que ter abandonado a edição “foi um erro”, assume.

De Raul Brandão a Camilo Castelo Branco, passando por Eça de Queiroz, estes serão alguns dos clássicos que a Ulmeiro irá reeditar em língua portuguesa. Mas também do Brasil virá matéria-prima para ler com a chancela da editora quinquagenária: Machado de Assis será um dos escritores em breve publicados, mas José promete outros nomes, fruto do seu grande interesse por literatura brasileira.

Para já, a primeira obra será mesmo de um autor português. Jacinto Rego de Almeida, com o seu Tragam-me a Orelha de Pedro Sanches — um romance policial “muito bem escrito” na linha de Rubem Fonseca, assegura. O segundo livro também já está definido: Sete Cartas a um Jovem Filósofo, de Agostinho Silva, será a outra aposta da editora. Os livros serão postos à venda na Livrarte, mas também serão distribuídos para outras livrarias.

José acredita que o grande desafio de uma editora é a distribuição. “Um livro que não circula, não existe”, diz à mesa da secretária ladeada por uma parede de livros. “Não haverá grandes tiragens, pois os livros podem ser produzidos à medida que são necessários”, afirma o editor. 

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O preço andará entre os 12 e os 14 euros, e José explica essa decisão com números. Metade dos clientes da livraria de Benfica são jovens entre os 30 e os 35 anos. E isso só acontece “porque os livros são baratos”. No fundo, “um livro só existe quando encontra o leitor”, e o livreiro não quer contribuir para a quebra do seu ciclo.

Meio século de edição contestatária

A exposição Edição e Contracultura: Ulmeiro e Amigos, 1969-2019 estará patente na Fábrica do Braço de Prata, em Marvila, mas ainda sem data marcada. José tem apenas uma certeza. Quer que a mostra seja itinerante e que viaje por vários pontos do país, pois “Portugal é mais do que Lisboa”, defende. Os trabalhos já estão em curso e irão mostrar um pouco do que foi a actividade da editora e livraria durante estes 50 anos.

A revista demorará um pouco mais a sair, ainda que os pormenores estejam quase todos acertados. Haverá colaborações de gente conhecida, algumas já confirmadas, mas José também quer que os mais novos tenham algo a dizer. “Sou um grande adepto da mistura de gerações”, conta, enquanto folheia um caderno de apontamentos onde escreveu o nome da nova publicação dedicada à literatura: O Voo da Coruja. A razão do nome é uma história longa mas José não se inibe de a contar.

Tudo começou numa casa de campo que o editor e a sua mulher, Lúcia, tiveram em tempos, próxima de Porto de Mós. Numa das árvores que circundavam a casa, José descobriu que havia corujas instaladas. Teve-as por lá, durante mais de 30 anos, até que deixou a casa.

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Depois de todos esses anos, um amigo questionou-o:

— Hás-de explicar-me como elas estão vivas. Eu tentei criá-las em minha casa e morreram.

José tinha a resposta na ponta da língua:

— Olha, duas coisas fundamentais: Primeiro, elas têm de ter o seu espaço. E não pode haver contacto directo com o homem. Se as tentares domesticar, vão morrer porque só saem à noite à procura de comida.

Passados estes anos, José ainda vai perguntando por elas e o que lhe dizem é que por lá continuam. “Daí veio o nome voo da coruja, que é de uma grande imponência”, conclui. A revista terá uma tiragem pequena: “Só gosto de projectos de minorias. As maiorias assustam-me, mesmo as políticas”, reitera.

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Na livraria de Benfica onde os livros decidem o chão que se pisa, a desarrumação continua a reinar. Apesar de tudo, “há gente a oferecer-se para ajudar a arrumar a casa”, diz, confirmando que irá “finalmente aproveitar essa boa vontade” para encontrar um meio-termo.

“Deixaremos alguma desarrumação para que as pessoas possam encontrar os livros”, confidencia. O espaço de José e Lúcia continua a ser uma livraria onde é “preferível encontrar a perguntar”. Só assim se cumpre o ciclo do livro e ele encontra o seu leitor.

“A senhora, quando for assim, não largue o seu livro”, diz José para uma cliente que se lamenta de ter perdido o livro que acabara de encontrar. Na Ulmeiro, afinal de contas, são os livros que escolhem os seus leitores e nada há a fazer quanto a isso.

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