De Gdansk a Bremen, radicalização e violência

O assassino de Pawel Adamowicz é um jovem com antecedentes criminais mas que justificou o seu acto acusando-o de pertencer à Plataforma Cívica.

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1. Ontem, em Gdansk, uma multidão ainda consternada e entristecida prestou a última homenagem ao presidente da câmara da cidade símbolo da resistência ao comunismo e berço do Solidariedade, assassinado quando participava numa cerimónia pública de caridade, no passado dia 13.

Tinha 53 anos, liderava a cidade desde 1998, era membro do partido liberal Plataforma Cívica, que governou a Polónia, antes da ascensão ao poder do partido nacionalista Lei e Justiça dos gémeos Kaczynski. Gdansk era uma espécie de oásis num país ainda às voltas com o seu passado e com o seu futuro, onde o partido que actualmente governa rejeita abertamente a democracia liberal e a “doença” do liberalismo social e cultural, desmantelando lentamente a separação de poderes em que assenta o Estado de direito e mantendo uma fricção constante com as instituições europeias.

Não há uma razão aparente para a polarização política a que se assiste na Polónia, que viveu um verdadeiro milagre económico desde que se libertou do comunismo, que não sofre uma recessão desde 1992, cuja taxa de desemprego pouco ultrapassa os 5%, cuja produtividade aumentou exponencialmente e cujo PIB triplicou em menos de 30 anos. As explicações para o florescimento de um partido nacionalista e antiliberal têm de ser porventura encontradas algures na história e na cultura polacas e sobretudo na emergência de uma força política profundamente enraizada na forte tradição católica do país (que foi, de resto, decisiva para a sua libertação precursora, em 1989, dois anos depois de a Igreja ter escolhido um Papa polaco), que vê em Bruxelas ou em Berlim uma espécie de “imperialismo benigno” cujas regras não aceita.

O assassino de Pawel Adamowicz é um jovem com antecedentes criminais mas que justificou o seu acto acusando-o de pertencer à Plataforma Cívica, liberal, europeísta, aberta aos imigrantes. Adamowicz era, naturalmente, um dos alvos políticos preferidos do partido no poder. “Isto pode ser o fim da inocência”, diz ao FT um activista dos direitos humanos de Gdansk. “As reacções à sua morte fazem-nos pensar que vivemos na era do extremismo político.”

Na Alemanha, poucos dias antes, Frank Magnitz, dirigente do partido de extrema-direita AfD, foi espancado quase até à morte numa rua de Bremen, havendo igualmente a suspeita de que os autores do crime tinham um propósito político. A esmagadora maioria da sociedade política e mediática criticou duramente o atentado. “Quem quer combater o ódio com o ódio permite que o ódio acabe por vencer”, disse o líder dos Verdes, Cem Özdemir. 

Durante a campanha do referendo britânico sobre o lugar do Reino Unido na Europa, uma deputada inglesa do Labour, Jo Cox, que fazia campanha pelo Remain, foi assassinada por um homem que gritou “Britain first”. A radicalização da linguagem (e dos actos) contra os judeus é outro dos sinais preocupantes a que assistimos em Londres ou nos EUA, na Polónia ou na Hungria. George Soros já foi acusado por um senador americano de financiar as caravanas de imigrantes que partem da América Central em direcção aos EUA. Onze pessoas foram mortas em Novembro numa sinagoga de Pittsburg (EUA) por um militante anti-semita.

Um estudo recente de dois cientistas políticos americanos revelava uma sondagem à escala nacional na qual 9% dos eleitores republicanos e outros 9% de democratas concordavam que a violência seria aceitável se os respectivos opositores ganhassem as eleições de 2020. Bombas (artesanais) foram enviadas pelo correio a Obama, Hillary Clinton, Soros e outras figuras democratas.

Deve atribuir-se a estes actos de violência com aparentes motivações políticas algum significado, ou são actos isolados e numericamente irrelevantes?

2. As sociedades democráticas resistiram bem aos grandes atentados terroristas de Madrid e de Londres em 2004 e 2005, na sequência do 11 de Setembro. Houve alteração de legislação, que se reflectiu (um pouco) no nosso modo de vida, para controlar as fronteiras, aumentar a vigilância policial nas ruas e a vigilância sobre indivíduos e grupos suspeitos, houve medo e, portanto, maior intolerância em relação a minorias étnicas de origem islâmica.

Não se pode dizer que tudo ficou na mesma, mas o modo aberto e livre de funcionamento das democracias liberais europeias prevaleceu largamente. Tivemos depois de nos habituar a outra forma de terrorismo, menos apocalíptico mas igualmente letal, praticado sobretudo por “lobos solitários”, na maioria jovens, radicalizados no seio das sociedades europeias e inspirados pela propaganda do fundamentalismo islâmico a que têm acesso constante via redes sociais, e que podem causar o terror indiscriminado com meios relativamente modestos e fáceis de adquirir.

A França foi a mais fustigada, com os atentados que provocaram dezenas ou mesmo centenas de mortos em Paris e em Nice. Noutros países, na Alemanha, no Reino Unido, na Suécia, habituámo-nos aos actos terroristas com a mesma origem caseira, que visam um mercado de Natal ou uma rua tranquila onde gente pacífica se passeia ao fim do dia. Muitos outros atentados — não sabemos exactamente quantos — foram prevenidos pelas polícias.

A violência em Gdansk ou em Bremen não se inclui no mesmo padrão. É um tipo de terrorismo individualizado que sempre existiu na Europa, que emerge da radicalização da luta política, que não aceita que o sistema democrático é incompatível com a violência e que qualquer confronto social ou político se resolve pela via da negociação.

A violência que marcou e continua a marcar as manifestações dos “gilets jaunes” um pouco por toda a França também não é exactamente a mesma a que estávamos habituados nas grandes cidades europeias, em que um grupo de extremistas que se movem entre a política e o gangsterismo perturbavam as manifestações pacíficas de cidadãos em protesto. O movimento dos “gilets jaunes”, como explica o politólogo francês Jacques Rupnik na entrevista que hoje publicamos no P2, fez da violência um instrumento da sua luta política, o que é novo em democracia.

Não estamos a falar de minorias ou de juventude radicalizada. Estamos a falar de gente que trabalha, tem família e um comportamento habitualmente normal. É o que acontece, porventura, quando muita gente tem a percepção de que ninguém a representa nas instituições e nos partidos ou quando, mais do que as dificuldades do presente, as pessoas tem medo das enormes incertezas do futuro.

3. A democracia liberal está a ser posta à prova um pouco por toda a parte, incluindo nos países ocidentais, onde as suas raízes são mais fortes e onde nos habitámos a dá-la como garantida. A polarização política e a crise de representação de largos sectores sociais, o medo do futuro, alimentam o radicalismo e o extremismo.

A emergência de líderes populistas e nacionalistas como Trump, ou Bolsonaro, Orbán ou Salvini, capazes de ganharem o poder com um discurso virulento, simplista e irracional, são avisos mais do que suficientes de que fecharmo-nos nas nossas certezas não é já a resposta possível.

Há nas nossas sociedades divisões profundas que atingiram o ponto de ruptura. Há problemas de integração dos imigrantes que são reais e não inventados por mentes “xenófobas”. A violência política em Gdansk, em Bremen ou em Pittsburg pode ser apenas um pequeno sinal. Que, mesmo assim, deveríamos levar a sério.

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