NATO, 70 anos ao serviço da Europa

A NATO deve ser encarada como uma ferramenta (a única do género) fundamental ao serviço da estabilidade e da promoção de valores democráticos, porque vai muito além da componente militar.

A NATO está a celebrar 70 anos. A data exacta do aniversário é 4 de Abril, dia em que foi assinada a Declaração de Washington que instituiu a Organização do Tratado do Atlântico Norte e da qual Portugal faz parte desde o primeiro momento, enquanto membro fundador. A assinatura de tão importante documento coube ao ministro dos Negócios Estrangeiros de então, José Caeiro da Matta, e ao embaixador Pedro Teotónio Pereira, um acto que viria a ser da maior relevância político-diplomática para o nosso país durante a segunda metade do século XX. Poucos foram os momentos na sua História em que Portugal teve a oportunidade de integrar um núcleo duro de uma organização que seria basilar na construção de um novo paradigma nas relações internacionais. Estava-se em 1949, numa altura em se começavam a erguer os alicerces do novo sistema bipolar sobre os escombros da II Guerra Mundial, onde era já evidente que os aliados de outrora, eram agora inimigos. De um lado, os EUA, do outro, a União Soviética, e no meio, a Europa.

Com a herança trágica de duas guerras mundiais num espaço de menos de cinquenta anos, a NATO nasce com um propósito de estabilidade e não bélico, assumindo-se, desde o primeiro momento, como uma aliança política e não militar. Os líderes ocidentais afastaram a hipótese de mais um conflito militar em grande escala para combater o novo inimigo “vermelho” que se agigantava a Leste. A guerra era agora ideológica (mais tarde política e económica). Entre os anos de 1945 e 1949 registou-se uma sucessão de acontecimentos e de produção de pensamento dos Wise Man que ajudou a construir o paradigma no qual iria assentar a NATO e que, no fundo, perduraria até 1989/91.

Na base desse novo modelo do sistema internacional estava a doutrina de containment idealizada pelo diplomata George F. Kennan, que foi vice-chefe da missão americana em Moscovo logo a seguir à II Guerra Mundial (esteve também colocado em Lisboa durante a Guerra). Kennan, uma figura incontornável no estudo do realismo em qualquer curso de Relações Internacionais, foi o primeiro a perceber o comportamento e a natureza expansionista do regime comunista soviético do pós-Guerra. Primeiro, num long telegram enviado para Washington, em 1946, e depois num artigo que viria a ficar célebre, publicado em Julho de 1947 na Foreign Affairs. Assinado sob o pseudónimo de Mr. X., o artigo tinha como título The Sources of Soviet Conduct e tornar-se-ia num dos documentos doutrinários mais importantes das relações internacionais da segunda metade do século XX e que iria ser fundamental para definir as “regras” da Guerra Fria.

Kennan, ciente das perversidades e males do regime de Estaline, não acreditava, no entanto, na ideia de um conflito directo entre as duas superpotências. A sua doutrina acabaria por favorecer uma solução intermédia de estabilidade e de “contenção” perante o avanço do comunismo na Europa e em diferentes partes do mundo. O seu pensamento ajudou a forjar o sistema bipolar da Guerra Fria que, em parte, viria assentar na “contenção” e na “dissuasão”, privilegiando-se, assim, a estabilidade sistémica através da manutenção de um status quo de equilíbrio de poderes, com momentos de fricção, mas sem confrontação directa. A tal Guerra Fria que mais tarde o sociólogo realista Raymond Aron viria a caracterizar de forma sábia, como um sistema onde “a paz é impossível, a guerra é improvável”.

A criação da NATO surge precisamente no meio deste contexto, de definição do que viria ser o paradigma das relações internacionais nas décadas seguintes. Se, como referiu Lord Ismay, primeiro secretário-geral da NATO, o seu objectivo era to “keep the Russians out, the Americans in, and the Germans down”, rapidamente houve um esforço no sentido de fortalecer política e economicamente a Alemanha ocidental, como forma de combater a ideologia comunista. O Plano Marshall ou o Banco Mundial foram outros dos instrumentos criados dentro da nova lógica sistémica. É por isso que, mais do que a componente militar, é preciso olhar para a génese da NATO numa lógica geopolítica, concretamente de aliança política perante um inimigo comum. O célebre Artigo 5.º é, na prática, a materialização dessa vontade de união numa defesa colectiva e reforça o tal efeito “dissuasor”, basilar no equilíbrio do sistema de Guerra Fria.

Atendendo à conjuntura autoritária do regime de Salazar, cerceando os valores da liberdade e da democracia, é extraordinariamente irónico que Portugal, país provinciano e isolacionista, viesse a fazer parte de uma organização internacional, que se tornou num dos melhores exemplos do multilateralismo político entre nações. Desde o início que a relação entre Portugal e a NATO – quase sempre distante da atenção dos portugueses, exceptuando em momentos de conflito – tem-se pautado, maioritariamente, pela estabilidade e reciprocidade. É certo que houve períodos mais sensíveis nesse relacionamento, nomeadamente no auge dos movimentos independentistas das nações africanas e durante o PREC, mas nada que colocasse em causa a presença de Portugal na NATO. Aliás, é já num período de forte crítica internacional ao nosso país por causa da situação em África que, no início dos anos 70, Portugal reforça a sua ligação à NATO, com a instalação do comando regional de Oeiras. A vinda do comando IBERLANT para Portugal veio acentuar a relação de proximidade entre as Forças Armadas nacionais com as suas congéneres aliadas.

A entrada de Portugal na NATO proporcionou a modernização e actualização das Forças Armadas portuguesas. Ao longo das décadas, através da troca de informação e de exercícios militares regulares, Portugal incorporou as medidas necessárias para obedecer aos critérios NATO, adquirindo a capacidade de inter-operacionalidade com as diferentes forças aliadas. Não será exagerado afirmar que a excelência das forças nacionais em missões no estrangeiro se deve, em grande parte, à concretização dos compromissos assumidos com a NATO, onde o nível de exigência e prontidão é muito elevado.

Politicamente, a presença na NATO materializou a visão atlantista de Portugal e solidificou uma relação bilateral privilegiada com os EUA. É importante sublinhar que, em termos de estrutura militar, Portugal esteve, até há uns anos, integrado unicamente no comando estratégico atlântico (Allied Command Transformation – ACT), sedeado em Norfolk, EUA. Historicamente, esta estrutura teve sempre uma vocação de doutrina e de treino, sendo que a projecção de forças, propriamente dita, esteve sempre a cargo do comando estratégico europeu (Allied Command Operations – ACO), sedeado em Mons, Bélgica. Actualmente, e com as sucessivas reestruturações da estrutura militar da NATO, o importantíssimo Joint Analysis and Lessons Learned Centre (JALLC), localizado em Monsanto, mantém-se afecto ao comando atlântico, mas o Naval Striking and Support Forces (STRIKFORNATO), que pressupõe projecção de forças e sedeado em Oeiras, está debaixo do comando aliado europeu.

Ao longo destas décadas, e apesar da enorme competitividade entre nações aliadas para atrair comandos ou quartéis, Portugal tem conseguido manter relevância dentro da NATO e, nalguns casos, com upgrades, como se verificou com a vinda do JALLC para território nacional, um centro de enorme importância na produção de conhecimento e doutrina no seio da NATO. Para quem conhece minimamente a organização e a participação portuguesa nas suas estruturas militar e civil, constata que este é um activo político e diplomático que Portugal deve preservar, não apenas pelo posicionamento nas relações internacionais que lhe proporciona, mas também pelo papel único que a NATO tem entre as organizações multilaterais. 

A NATO foi-se construindo durante 70 anos, tornando-se numa das mais democráticas (funcionamento) e eficazes (projecção de forças) organizações internacionais, um património e know how que não devem (e não podem) ser desperdiçados por questões ideológicas de certas correntes políticas europeias ou por causa de uma “birra” de um residente transitório na Casa Branca. É certo que os EUA têm sido o principal financiador da NATO e que, sem o seu compromisso ou vontade, a organização enfrenta desafios importantes em termos de sustentabilidade, mas, seguramente, a visão irresponsável de Donald Trump não será perpetuada pelos seus sucessores, sejam democratas ou republicanos. Até porque quando, em diferentes momentos, administrações democratas ou republicanas apelaram aos líderes europeus para investirem mais na Defesa, nenhum alto responsável americano colocou em causa o papel da NATO no sistema internacional, mesmo depois da Queda do Muro de Berlim e da implosão da União Soviética.

Os tempos de Guerra Fria já lá vão e o Pacto de Varsóvia está arrumado nos livros de História e, por isso, a NATO, hoje em dia, não deve ser vista com qualquer carga ideológica. Pelo contrário, deve ser encarada como uma ferramenta (a única do género) fundamental ao serviço da estabilidade e da promoção de valores democráticos, porque vai muito além da componente militar. Basta conhecer os seus programas civis, científicos, de investigação ou de educação (ainda há umas semanas, uma equipa da Universidade de Aveiro ganhou um concurso lançado pela NATO, no qual especialistas em Informática e Sistemas Inteligentes criaram um sistema capaz de combater mensagens extremistas na Internet).

Setenta anos depois, a NATO acabou por ser aquilo que outras iniciativas políticas preconizaram, mas nunca concretizaram, ou seja, uma aliança maioritariamente de Estados europeus, capaz de projectar forças multinacionais com toda a eficácia e inter-operacionalidade na defesa de interesses comuns, sempre na sequência de um processo de decisão por unanimidade. Na verdade, e apesar dos vários esforços ao longo das décadas para a criação de uma estrutura exclusivamente europeia, como a Comunidade Europeia de Defesa (CED) ou a União da Europa Ocidental (UEO) – conhecida nos meandros diplomáticos como “Sleeping Beauty” por causa da sua inactividade –, a NATO acabou por prevalecer perante algumas tentativas políticas que se moviam mais por interesses isolados e de desconfiança para com os EUA do que propriamente pelo racionalismo dos meios e objectivos.

Qualquer organização europeia que fosse criada, para todos os efeitos, seria redundante e recorreria aos mesmos meios disponibilizados para a NATO. Em Dezembro de 1998, em mais uma dessas entusiasmadas mas infrutíferas iniciativas das chancelarias europeias, Londres e Paris, pelas mãos de Tony Blair e Jacques Chirac, assinaram a Declaração de Saint-Malo, com vista à criação de um “exército europeu”. Uma decisão que, mais uma vez, não tinha consistência nem articulação com a arquitectura de segurança e defesa existente, cujos seus pilares estavam fixados na NATO, da qual o Reino Unido e França faziam parte. Perante isto, Madeleine Albright, na altura secretária de Estado de Bill Clinton, não deixou de sublinhar o empenho de Washington no reforço da então European Security and Defence Identity (ESDI), desde que fosse dentro da NATO, evitando-se a duplicação de recursos e a secundarização de todo o “trabalho feito”. Por isso, definiu três critérios que ficariam conhecidos como os Three Ds: De-linking (evitar a separação da ESDI da NATO); Discriminating (evitar a discriminação de aliados da NATO que não fizessem parte da União Europeia); Duplicating (evitar a duplicação de meios já existentes).

Historicamente, criou-se sempre o equívoco de que o que estava em causa nestes projectos seria a construção de uma espécie de exército europeu único e comum. Ora, tal coisa nunca poderia ser concretizada, pelo menos no estádio de evolução da CEE/UE. O que realmente estaria em cima da mesa era a contribuição de forças nacionais em determinado momento, com capacidade de mobilização quase imediata e inter-opercional. Realisticamente falando, a construção de um “exército europeu” não seria mais do que um comando europeu sem a presença dos países que não integrassem a CEE/UE, nomeadamente os EUA e a Turquia. A esse propósito, é importante sublinhar que quando se fala nas forças da NATO, na prática, está-se a falar de soldados e recursos bélicos nacionais que, ao serviço daquela organização, mais não fazem do que responder a uma cadeia de comando multinacional. Além de quartéis, pessoal e alguns AWACS, a NATO pouco mais meios próprios tem. Como há uns anos dizia um operacional daquela organização, com muito simplismo e ironia, quando uma determinada missão passa da NATO para a cadeia de comando da ONU ou da UE, basicamente, trata-se apenas de trocar os badges dos soldados.

A NATO é, desde há muito, o tal pilar europeu de “defesa e segurança”. A História dá-nos essa evidência. A questão é saber se os líderes europeus querem aproveitar os setenta anos de experiência política e militar sob a bandeira da NATO, para reforçar o peso europeu no seio da organização, numa altura em que Washington, pelo menos temporariamente, parece “desinteressar-se” do eixo transatlântico. Uma coisa é certa, a Europa não pode ficar sem qualquer mecanismo comum dissuasor e de projecção de forças. Nesse aspecto, a NATO é insubstituível, até pelo papel que desempenha em zonas que vão para lá da geografia do Atlântico Norte. Talvez seja hora dos governantes europeus serem mais ambiciosos na assunção das “despesas da casa”, um apelo que tem sido recorrente nas várias administrações americanas.

No seio do clube europeu, Portugal tem uma condição única, a de ser atlantista por vocação e europeísta por convicção, e, por isso, tem desempenhado um papel fundamental na valorização do papel da NATO nas relações internacionais, ao mesmo tempo que enaltece o projecto de construção europeia. Essa tem sido uma virtude dos decisores portugueses ao longo dos anos, registando-se um raro mas louvável consenso entre os partidos de poder. Há muito que os nossos governantes, diplomatas e militares perceberam que existe uma complementaridade entre a NATO e a UE. Estas realidades não têm de ser rivais nem precisam de se anular mutuamente. Pelo contrário, a NATO poderá assumir, cada vez mais, a vertente europeia da “defesa comum” e a União Europeia poderá “puxar” mais para si a liderança desta organização. Claro que isso implicará vontade política e um maior investimento dos Estados-membros europeus, mas será sempre um preço muito menor do que aquele que teriam de pagar, caso deixassem a NATO definhar por causa de interesses políticos egoístas ou em função do desinteresse de Washington.

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