Iridescente

Vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa.

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Natal. Temperaturas exteriores mais amenas do que as esperadas não bastam para inutilizar as lareiras de um castelo. Os fogos que ali ardem são polivalentes, que é palavra muito ouvida hoje no “mercado de trabalho”. No caso presente, polivalência não se refere à necessidade de desdobramento de um trabalhador em múltiplas tarefas para além do horário de trabalho, mas à riqueza da simbologia do fogo, que é lume (lar) e casa (lar), e, quando ardia nas fogueiras primitivas nos centro dos acampamentos e, mais tarde, nas lareiras (de lar), aqueciam, protegiam, cozinhavam, iluminavam, distraíam. Podendo, não se dispensa, pelo menos, essa sua acção eficaz de vencer o ar gelado conservado por paredes de mais de um metro de espessura, de pedras que viram passar gerações em sucessão, nos seus bulícios insignificantes.

São fogos benignos. Tão benignos, de facto, que o conforto que espalham nas salas, em calor, luz, cores e sons, assoma das chaminés em fumozinhos sumários que, vistos de fora, se transformam em sinais de vida e mesmo em símbolos de Natais passados e guardados em memória, quando, como agora, vão pelo ar como bandeiras soltas, chamando as minhas filhas ao seu breve regresso a casa para festejo da quadra. E são esses sinais de fumo que elas procuram de longe, mal se passa a curva da estrada que põe a velha casa em vista, nos carros onde seguem com aqueles que elas escolheram para com elas passarem os anos que o destino fixar.

Passados os portões principais, durante o meio quilómetro de caminho de acesso, vão procurar elas – e eles com elas – sinais de gente por entre as árvores do parque e nas suaves colinas, no roseiral, nas vinhas, nos baluartes, nos torreões, nas janelas, na porta principal.

Enquanto aguardo que cheguem, vejo-as, em pequenas, neste cenário da biblioteca, sobre o tapete alto que as isolava do frio das lajes desde o tempo do gatinhar aos primeiros passos, sentadas com os jogos em volta, empilhando cubos ou fazendo recortes, colorindo livros, decifrando letras, cantado as canções do jardim-infantil ou fazendo desaparecer os líquidos quentes ou frios das canecas que eu tinha por hábito pousar, entre goles, sobre a grande mesa que, ao centro da sala, servia de apoio à consulta dos exemplares mais pesados ou sobre a qual pequenas refeições eram servidas para sustento dos bibliotecários (o meu amigo Nestor e eu) ou de saudação aos convidados que nos alegravam com as suas visitas.

Ah, a escada móvel de madeira, de acesso às prateleiras mais altas das estantes, que fascínio, delas e meu!... Aquele gigante em madeira confortavelmente boleada e com pele de um verniz calmante através do qual o sol brilhante fazia ressaltar um jogo de tons dançantes entre o mais escuro dos castanhos e os mais amarelados, sugestivos de mel e âmbar, levava-me quase à altura do tecto. Lá de cima, via-as ainda mais pequeninas; lá em cima, viam-me ainda mais distante. Mas quando se aperceberam de que o mastodonte tinha rodas e que eu o conseguia mover sem a ajuda de uns quantos elefantes, que diversão, que delícia: começaram por me ajudar a empurrar o cavalo de Tróia, mas logo descobriram que era melhor ainda sentarem-se nos degraus mais baixos para eu as empurrar. Foram crescendo e subindo aos degraus mais altos, até atingirem o topo, a balaustrada, o corrimão (palavra que tem dois plurais: corrimãos e corrimões). E passaram a aproveitar o meu mergulho total neste ou naquele volume para, em vez de fazerem casinhas no chão, por baixo da escada, muito levemente a empurrarem de modo a me confundirem quando, regressado ao mundo dos vivos e tentando repor o livro no seu lugar, me apercebia de que este se encontrava afastado para além do meu alcance.

Agora, do alto da escadaria, só os livros são os mesmos. Já não há passinhos de meninas pequeninas, já não há canções nem boquinhas a beberem da minha caneca às escondidas, já não há casas em Lego nem desenhos, a não ser os que estão guardados para que elas descubram em adultas o que o pai conservou das suas infâncias. As mais velhas foram às suas vidas, a mais nova espreita a vida no mostrador do seu telemóvel e a biblioteca já não faz parte dos seus circuitos.

Ouço motores, olho através das vidraças, vejo automóveis que chegam, corro à varanda, aceno, até que, circundando a esquina, passam o arco de acesso ao pátio interior, para onde abrem portas envidraçadas do meu local de trabalho, do meu escritório, do meu retiro espiritual. Abro-as, o sol entra, as filhas e os genros desembarcam e corremos, braços estendidos para braços estendidos, reencontramo-nos todos, o arco-íris quase completo, que se completará nos próximos dias, com o contacto presencial ou tecnológico com todos aqueles que, por razões do coração, se encaixam na nossa árvore. É Natal.

Há pessoas para saudar na casa e lugares mágicos para visitar na propriedade, em peregrinação pelos retiros onde, juntos, encontrámos muitas vezes a tranquilidade e a calma em ocasiões adversas. Como o de uma parte do quintal onde a hera crescera caprichosamente pelo chão e que eu apresentara às minhas filhas como um mar verde sobre o qual podíamos caminhar e sonhar, criando histórias. Ah, a nogueira-americana de folha miúda e tronco grosso, tão bonita, que dava nozes-pecãs, pequenas e exóticas, como se fossem de brincar... Que pena ter partido pelas raízes e caído com enorme fragor, por cima do muro, para o caminho público, em noite de tempestade em que só a minha mulher lá estava, sem governanta, sem criados, cadáver de árvore que os bombeiros vieram decepar, para repor a circulação. Que horror! Que perda!

Mas continuamos a ter a cor de laranja dos cogumelos e a mais berrante dos dióspiros (mais conhecidos por “diospiros”, tal como os termóstatos são conhecidos por “termostatos”), que, mesmo ao sol de Dezembro, se abertos pelo bico dos pássaros que os comem mais depressa do que nós, e retroiluminados, geram tons translúcidos da maior beleza, tal como o sabem os amantes da fotografia. E temos os verdes do musgo fofo e alto que há quem arranque para fazer os caminhos do presépio, entre as figurinhas de barro, mas que eu prefiro no seu lugar, lembrando por vezes os verdes profundos do pescoço dos patos-reais que nadavam no lago. E os azuis-iridescentes dos pavões, ave maravilhosa por ser um catálogo ambulante das cores das tintas a óleo.

E de volta ao Natal da festa, da Consoada, da sobredosagem de sobremesas folclóricas familiares, que, para nós, são rabanadas, aletria, bolinhos de cenoura, abacaxi, e o bolo-rei que parece servir apenas para acrescentar colorido à mesa, já que fica intacto. É uma sorte que a nossa festa maior, mesmo adulterada, sobrecarregada, subvertida, seja a de um nascimento. Agrada-me.

Natal, natalício, nascido, nascituro, nado, nato, nativo, natural, natureza – palavras com a mesma raiz. Natalina – nome de uma artista de teatro. Natália, Natividade – nome de duas amigas. Todas, a seu modo, merecem ser celebradas. Tais como as minhas iridescentes filhas, a mais nova das quais resume a qualidade das três, chamando-se Íris.

Correio premente:

De Pompeu Agrícola, lugar de Pousa Maria, Freguesia de Lordosa, concelho de Viseu: “Por ocasião de um baile de máscaras que fizemos para angariar fundos para ajudar a greve dos enfermeiros, o ambiente azedou quando um amigo meu se apresentou vestido de ave, assim como a mulher, dizendo que ela estava disfarçada de cegonha e ele de cegonhão. Ora, como nunca tinha ouvido chamar cegonhão ao macho da cegonha nem que cegonha alguma vez tivesse tido macho, e tendo ouvido que vocês aí decidem apostas, peço uma análise a este caso que deu mosquitos por cordas e que fez congelar a entrega dos 123 euros e 70 cêntimos de receita aos enfermeiros, que se encontram agora guardados numa antiga lata de sortido da Triunfo”

Caro leitor, tenho várias dificuldades no entendimento de certas passagens do seu texto. Mas o suficiente para lhe dizer, desde já, que não aceitamos nem avaliamos apostas, nem isso faz falta, já que meios para apostar em tudo quanto mexe crescem como cogumelos, com ou sem o aval do Estado. Que “cegonha alguma vez tivesse tido macho” é simples de discernir, já que, caso não tivesse havido, não poderíamos agora falar numa espécie que não teria tido como se reproduzir. Talvez a sua confusão – e a que se gerou localmente – se faça com uma palavra para designar o macho da cegonha alternativamente a cegonha-macho. Pois bem, está com sorte: de facto, há. É cegonho. Quanto a cegonhão, também existe, mas significando menos um género de ave e mais um susto, o que poderá não perder muita propriedade na aplicação ao seu amigo, dependendo da sua (dele) fisionomia. Quanto à redacção por que optou na sua última frase, chamo a sua atenção para a infelicidade de se entender que, em vez dos 123,70 euros, são os enfermeiros que se encontram, por esta altura, guardados numa velha lata, dando sugestões de aperto e insalubridade. Também a expressão “sortido da Triunfo”, sem mais, pode referir-se, indiferentemente, a um sortido de bolachas ou a um sortido de roupa interior feminina. Espero ter sido útil, pois, a não ser assim, perdeu-se tudo, incluindo o seu tempo e o meu (o que é pior).

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