A caminho dos (loucos) anos vinte

Os cidadãos esperam equidade e mobilidade sócio-económica e sócio-cultural e quem o esquecer perderá a batalha dos anos vinte.

1. A entrada em 2019 põe-nos irreversivelmente na contagem decrescente para a terceira década do século XXI, a década dos anos vinte. Em Portugal, este será o ano das eleições legislativas e europeias que vão marcar e pautar o arranque político da nova década. Importa, por isso, olhar para os grandes desafios políticos e sociais, de modo a que, na feitura de balanços e de programas, na análise da conjuntura e no desenho da prospectiva, não percamos a visão de conjunto. Para que entre programas, medidas e slogans, não fiquemos pela espuma dos dias.

2. A crise da representação. O principal desafio político vem a ser a reinvenção da democracia representativa. A crise dos partidos tradicionais e dos meios de comunicação social convencionais (imprensa, rádio, televisão) consubstancia uma crise da representação e da mediação. A revolução tecnológica em curso criou a percepção de que os cidadãos podem dirigir ou controlar directamente o processo político. A emergência das redes sociais gerou a sensação de que o cidadão já não carece dos “media” para fazer valer e conhecer as suas reinvindicações e pretensões. Mais: engendrou a convicção de que pode comunicar com os líderes sem carecer de qualquer instância de mediação. Por outro lado, a multiplicação dos referendos e a assunção de que o voto directo é o único patamar legítimo de decisão forjaram as condições para o clamor para uma democracia directa digital. Uma democracia electrónica em que os cidadãos podem ser directamente consultados numa base semanal ou quinzenal e em que largamente dispensam as estruturas parlamentares. Esta tendência foi favorecida pela degenerescência dos partidos tradicionais, vistos como muito fechados e incapazes de responder aos novos reptos, com receitas vagas e repetidas, muitas vezes associados à inércia do amiguismo e até da corrupção. Daí que muitos deles tenham sido substituídos por movimentos (do género do “cinco estrelas” italiano ou do “em marcha” francês) pouco organizados e sem implantação territorial ou radicação em corpos intermédios. Ou que tenham cedido o lugar a partidos com receitas simplistas, demagógicas e populistas, geralmente orientadas para um retorno a uma idade do ouro perdida. A globalização e a digitalização, por sua vez, levaram também a uma “desterritorialização” da política, que faz com que as nossas habituais circunscrições eleitorais estejam desfasadas dos novos “espaços” ou até “campos” de decisão. E com isto, espalhou-se a ideia de que, no novo mundo global, o voto de cada um conta menos, fomentando a abstenção e o protesto inorgânico. É preciso, pois, descobrir, reinventar e, onde seja possível, reabilitar as instâncias de mediação, de representação, de absorção e canalização das aspirações políticas. O risco é a velha ilusão de uma democracia directa, agora travestida de patine digital, em que alguns domadores de algoritmos se estreiem como os novíssimos demagogos (matando a democracia).

3. A crise da igualdade. A questão política – como, aliás, a questão da representação – está intrinsecamente ligada à dinâmica social e económica. Não é preciso ser marxista ou, ao menos, “marxiano” para compreender que o processo político é fortemente determinado pelas condições económicas e sociais (e, bem assim, pela percepção que delas se tem, designadamente em razão das expectativas). Os processos da globalização e digitalização conduziram as sociedades – em especial, ocidentais – a uma séria clivagem sócio-cultural e sócio-económica, que, de uma forma assaz simplista e redutora, mas expressiva, se tem apresentado no corte entre “cosmopolitas” e “nativistas”. O tema é obviamente demasiado complexo, mas traduz uma realidade incontornável: a acentuação das desigualdades e a disseminação de expectativas de progressão sócio-económica. Tanto mais que a aceleração tecnológica, ao mesmo tempo que alarga a aspiração de progresso social, exponencia os riscos de agravamento do fosso sócio-económico nas populações. Os cidadãos esperam equidade e mobilidade sócio-económica e sócio-cultural e quem o esquecer perderá a batalha dos anos vinte. Nada disso põe na sombra a necessidade de estimular o crescimento e dinamizar a economia, mas atenção, muita atenção, à equidade e à igualdade. Deixando um recado conjuntural: cuidado com a excitação liberal, mesmo que a resposta à nova problemática da igualdade não seja a do socialismo e do velho Estado social.

4. A crise ambiental. Não vale a pena escapar à força dos factos. Como sempre no passado, mas em vestes que podem ser bem mais dramáticas, basta lembrar que não há vida sem água e que não há vida digna nem decente sem energia. Quem olvidar a dimensão ambiental e as suas profundas implicações, perderá irremediavelmente a batalha dos anos vinte. Acresce que as alterações climáticas são justamente a causa política que melhor ilustra a inviabilidade de um regresso ou regressão ao velho paradigma nacionalista. Basta lembrar que a poluição não conhece fronteiras e que essa “transterritorialidade” não se compadece com as várias e criativas declinações do isolacionismo. A consciência ecológica é o maior estímulo político para a compreensão da necessidade de instâncias internacionais e supranacionais de articulação, coordenação e integração. São muitos os que diabolizarão, ainda que com fala mansa, os fóruns de integração. Prestam um serviço de curto prazo, piscam o olho ao voto de ocasião.

5. Há, antes e depois, a crise da identidade, postulada pela diversificação de contactos e relações e pela aceleração da história, que nos fazem viver não apenas em vários espaços, mas também em várias épocas e a diferentes velocidades. Toca o político, mas toca densamente o humano. Merece outra prosa. Os partidos, devidamente sediados nos parlamentos, asseguravam a representação dos cidadãos. E os media, como actores privilegiados da esfera pública e tal como o nome indica, garantiam a mediação.

Sim. Papa Francisco. A política de migrações, só gerível à escala europeia, deve ser prudente e responsável. Mas não pode nunca resultar na indiferença geral que põe em causa a dignidade humana.

Não. Governo e taxa de carbono. Nos combustíveis, como no resto, o governo e Centeno dão com uma mão e tiram com as duas. É inadmissível a forma como tentam enganar e manipular os portugueses. 

           

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