O essencialismo das cores ou a queda do Brasil

O mais recente episódio da novela brasileira foi protagonizado pela nova ministra, Damares Alves, que anunciou uma “nova era” para o Brasil, enquanto gritava — com o histrionismo característico de um pavilhão pentecostal — que “menino veste azul e menina veste rosa”.

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Sérgio Moraes/Reuters

A morte da secularidade brasileira tem sido anunciada com o progressivo aumento da bancada evangélica no Congresso Nacional. A contra-reforma do fundamentalismo religioso tem usado a chamada “ideologia de género” como bandeira para ganhar relevância num clima de populismo que se alimenta da ignorância histórica e da iliteracia científica da população. Disfarçado de guerrilha anti-politicamente correcto, escapa aos seus defensores a ironia de chamarem “ideologia de género” a um movimento que advoga a liberdade na expressão de género, enquanto simultaneamente lutam afincadamente pela manutenção de uma ideologia que impõe a exclusividade de características de género.

O mais recente episódio desta novela brasileira foi protagonizado pela nova ministra, Damares Alves, que anunciou uma “nova era” para o Brasil, enquanto gritava — com o histrionismo característico de um pavilhão pentecostal — que “menino veste azul e menina veste rosa”. Como seria de esperar de alguém que conhece e venera apenas um livro, a ministra ignora dados historiográficos que demonstram inequivocamente o anacronismo da genderização das cores.

Para além do universalismo das cores associadas ao género ser brutalmente estilhaçado por uma breve caminhada pelos corredores de uma galeria de arte ou museu nacional, historiadores/as como Jo B. Paoletti têm sugerido que as cores associadas ao género no vestuário das crianças é uma prática que remonta apenas ao século XX. Como sugere Paoletti, a neutralidade de género nas roupas de crianças estaria patente na prática de todas usarem o que hoje entenderíamos como vestidos de cor pastel até os seis anos (ver Pink and Blue: Telling the Boys from the Girls in America, Indiana University Press, 2012).

Para além disso, a desafiar as nossas pulsões anacrónicas está a constatação histórica de que a associação das cores ao género surgiu primeiramente em sentido inverso. Numa publicação do Earnshaw's Infants' Department, em 1918, afirmava-se que, segundo o consenso da moda infantil, o rosa era para rapazes e o azul para raparigas, uma vez que o rosa consistia numa cor mais decidida e forte (i.e., masculina) e o azul mais delicada (i.e., feminina). É, aliás, historicamente sugerido que foi precisamente na sequência do sentimento anti-feminilidade do movimento de libertação das mulheres que estas normas foram invertidas, posteriormente solidificadas por um marketing de género que incrementa a eficácia das vendas de um mesmo produto quando direccionado separadamente para homens e mulheres. Apesar disso, parece não haver quaisquer diferenças de género na preferência por cores.

Há, contudo, um aspecto deveras contraditório naqueles que se insurgem contra uma cultura educativa "desgenderizada" e sem noções rígidas do que é “para meninas” e “para meninos”: se as características inerentes à masculinidade (para rapazes) e feminilidade (para raparigas) não são socialmente construídas, mas sim resultado de um essencialismo biológico, então não haverá qualquer consequência da chamada “ideologia do género”. Qualquer que fosse o processo de socialização para uma neutralidade de género seria rapidamente esmagado pelo autoritarismo da biologia, separando hermeticamente as águas do masculino e do feminino.

A discussão não é, portanto, sobre a existência ou não de diferenças de género, mas sim sobre a exclusividade e obrigatoriedade de um conjunto de artificialidades socialmente construídas. No fundo — e como sempre —, é sobre a sociedade que queremos.

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