A História como desporto de competição

No último dia do ano, Rui Tavares, apelando a um “sobressalto da vontade”, fez neste jornal uma proposta para a próxima década: “Tomemos decisões para a década e não para o ano”. E, fazendo da década uma categoria do tempo histórico e um instrumento metodológico, percorreu sucessivamente as últimas cinco décadas (dos anos 70 à actualidade), resumindo uma a uma como se fossem individualidades efectivas do devir histórico e não apenas uma unidade dos calendários. Quinze vezes utiliza Rui Tavares, nesse texto, a palavra “década”. E, escandindo a história em unidades decenais com a mesma exactidão com que a modernidade se aplicou a configurar e reconstituir épocas autónomas (o que levou o filósofo Odo Marquard a dizer que a modernidade era a “época das epoquizações”), Rui Tavares decretou para o dia seguinte (já lá vão quatro dias) o início de uma nova década: “Politicamente, a década de 2020 começa já amanhã”. Como se pode perceber facilmente, a sua metodologia leva-o, logicamente, à ilusão historicista de que a história está sempre a actualizar-se de dez em dez anos. E, assim, a tarefa deste historiador do presente é correr atrás ou à frente do tempo, fazendo resumos e balanços das décadas imediatamente anteriores (cada uma delas com a sua prosódia e a sua singularidade epocal), tal como nos jornais se fazem os balanços anuais no final de Dezembro, criando a grande ilusão de que tudo vai recomeçar em Janeiro e se precipitará para um fim com data marcada em Dezembro do ano seguinte. Às vezes, é preciso estar atento aos pequenos desajustes entre a década da temporalização histórica e a década do calendário, como é o caso da década de 2020 que, segundo Rui Tavares, “politicamente começa já manhã”, ou seja, com um ano de avanço em relação à contagem do decénio, que começa no zero e avança de dez em dez. Se alguém pensa que é possível traçar a cesura em cada um dos anos que terminam noutro algarismo que não seja o zero (delimitando, por exemplo, a década que vai de 2005 a 2015), está enganado. Aqui, a história corta-se sempre pelo picotado.

Não tenho dúvidas de que Rui Tavares, tendo lido Reinhart Koselleck, é capaz de se  reconhecer criticamente e até de rir de si próprio ao ler uma citação que este  grande historiador dos conceitos e da semântica dos tempos históricos faz de uma frase de Adelbert von Chamisso: este poeta romântico disse uma vez que tinha partido para Leipzig para “apanhar o comboio atrelado ao Zeitgeist”. Para apanhar a década de 2020 e o respectivo Zeitgeist o comboio da história de Rui Tavares segue mais acelerado. Tão acelerado que até uma geração tem a medida standard da década: “Como todos os miúdos da minha geração, a do início dos anos 1970...”, assim começa o texto do colunista a anunciar, para o dia seguinte, dia de Ano Novo, o início de uma nova década. Uma década, uma época, uma geração: vai tudo corrido pela mesma medida, breve e acelerada, já que essa coisa da história e da historiografia, vista do lado do jornalismo, é quase sempre um desporto de competição: vitoriosos são os que “ficam na história” ou “fazem história”, como se diz no idioma que concebe a história como um podium e uma instância do Juízo Final. Esperemos que o historiador Rui Tavares nunca se deixe contaminar pela unidade de medida do tempo histórico usado pelo colunista comprometido, culto e desenvolto (não há aqui nenhuma ironia) que também se chama Rui Tavares.

Falei em aceleração, precisamente sob o signo de Koselleck. Foi ele que nos forneceu uma teoria da abreviação do tempo e da aceleração da história como uma das características centrais da modernidade. De um ponto de vista político, é uma questão importantíssima, hoje, saber quem acelera e quem diminui a velocidade. A contradição do texto de Rui Tavares é que ele apela a uma política do tempo mais longo e mais lento, usando no entanto categorias ilegítimas, construídas pelos ditames da brevidade e da aceleração. Faz lembrar uma famosa anedota da União Soviética: “Dorme mais depressa, camarada!”, ordenavam aqueles que acreditavam tão convictamente na planificação quinquenal que achavam que ela podia transcender um limite natural.

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