O absoluto do desenho

A exposição com os desenhos de Rui Chafes é a primeira apresentação antológica dos seus trabalhos sobre papel.

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A exposição não pretende estabelecer qualquer tipo de relação didáctica e ilustrativa entre os desenhos e as esculturas de Rui Chafes
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Não é a primeira vez que o escultor Rui Chafes (n. Lisboa, 1966) mostra os seus desenhos, nem é uma novidade saber que desenhar ocupa um lugar importante na sua prática artística. Desde pelo menos a publicação da sua tradução dos Fragmentos de Novalis (1992, ed. Assírio & Alvim) que a existência deste corpo de trabalho é pública. Não que estivessem escondidos, mas estavam guardados num lugar de intimidade que o artista queria manter.

A presente exposição é a primeira apresentação antológica destes trabalhos sobre papel. E é antológica porque apresenta de um modo consistente, sistemático e crítico o modo como certas inquietações, referências e interesses têm percorrido o trabalho deste artista. Ainda que a exposição comece com trabalhos de 1987 e termine em 2017, o seu foco não é estabelecer qualquer tipo de cronologia. Pelo contrário, aquilo a que se assiste é à tentativa de mostrar a tensão característica que percorre todos estes trabalhos.

A experiência desta exposição é a da entrada num labirinto de referências, como descrevem os curadores, onde surgem figuras como Beckett, Caspar David Friedrich, Fassbinder, Goethe, Nietzsche, Novalis, Platão, Wagner, entre outros, e que compõem um universo eclético no qual as diferentes disciplinas artísticas se reúnem e compõem um mundo comum no qual se partilha uma inquietação acerca do mundo, da vida e da arte. E é a tentativa de descrever um modo de ver — a que corresponde um modo de pensar e de imaginar — que esta exposição ambiciona.

Trata-se de uma visão sistemática e em profundidade que não pretende estabelecer qualquer tipo de relação didáctica e ilustrativa entre os desenhos e esculturas ou estabelecer qualquer tipo de relação causal que permita dizer: este desenho serve aquela escultura. Antes, devem entender-se estes desenhos como realidades autónomas em que o artista põe em prática diferentes modalidades de contemplação das formas do mundo.

Não se trata de uma pesquisa artística racionalmente empreendida, nem de uma questão dirigida ao mundo formal da arte. O seu foco são todas as formas, isto é, a pesquisa de Chafes não se circunscreve à forma artística, mas interessa-lhe perceber como arte e natureza partilham princípios de formação equivalentes. Por isso, é que nos seus desenhos surgem unidas num mesmo plano formas vegetais, orgânicas e geométricas, como que a mostrar a relação de continuidade e pertença existente entre princípios formais aparentemente diferentes.

Apesar deste continuo, podem estabelecer-se diferenças: se a relação com as formas vegetais parece ser contemplativa — com tudo o que esta actividade implica do ponto de vista do treino da observação e da inteligência —, a visão do corpo é feita a partir do ponto de vista do sangue, isto é, estes desenhos percorrem o caminho das veias, do sangue e do pulsar ritmado do coração na tentativa de saber o que é um corpo. Uma visão a partir do interior a que não corresponde uma procura pela alma, mas a conquista da visão do sangue.

A esta visão, que muito acertadamente os curadores caracterizam como gótica, juntam-se modos de pensar seriais que filiam o trabalho deste escultor nos procedimentos de muita escultura minimalista norte-americana. Não que possamos dizer que há uma semelhança entre Chafes e os minimalistas, mas o forte interesse na espacialização das suas formas — como é explícito em muitos detalhes destes desenhos — torna claro que o que lhe interessa não é o objecto isolado, mas a sua capacidade de transmutação do espaço. Por isso, nestes desenhos ao desejo pelos corpos orgânicos e vegetais, alia-se um pensamento sobre a posição dos corpos do espaço, o seu movimento, organização e transformação.

Independentemente do modo como cada desenho é singular e detém elementos característicos individuais como a sua datação, materiais específicos (como remédios, tinturas, flores esmagadas, chá, etc.) e temas particulares, há uma recorrência de certos elementos estruturantes que provocam a experiência de se estar face a uma espécie de desenho continuo — como aliás, o título da exposição antecipa. Mas se o título aponta para uma ideia de infinitude, a sua natureza parece ser mais próxima da ideia romântica de absoluto literário (a que correspondeu um momento de crise artística, filosófica e política), tomando emprestada esta expressão a Lacoue-Labarthe e Nancy e à sua sistematização da teoria da arte e da literatura dos românticos de Jena. Trata-se de uma ideia — fundamental em toda a obra de Chafes — que propõe que independentemente dos diferentes momentos, formas, títulos, materiais ou expressões, o que está em causa é a aproximação a uma mesma inquietação. E todos os seus gestos são formas de aproximação a esse lugar turbulento e desconhecido desenvolvidos não através de uma estratégia de simples repetição, mas sim a partir do desenvolvimento de possíveis formas de concretização do desenho e da escultura por descobrir, por nomear, por encontrar.

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