ENTRE O CÉU E A TERRA (A HISTÓRIA DA MINHA VIDA)Entre o céu e a terra (a história da minha vida)

Todos, no fundo, escolhemos os nossos mestres. O escultor Rui Chafes escreveu uma autobiografia ficcionada em que atravessa séculos como aprendiz de nomes como Jacopo Della Quercia, Tilman Riemenschneider, Bernini, Otto Runge ou Novalis. O percurso desta sua vida é, no fundo, uma História da Arte. "Estamos sós com tudo aquilo que amamos."

Nasci em 1266, numa pequena aldeia que já não existe, na Francónia, Baviera. Os meus Pais eram muito pobres, de uma família de camponeses e artesãos, e a vida era extremamente difícil, tal como hoje continua a ser difícil, mas de outra maneira. Éramos nove irmãos e os meus Pais, como calculam, tinham muitíssimas dificuldades em sustentar aquela enorme família no miserável meio rural em que nos encontrávamos. Eram tempos em que, para sair daquele estado de "quase escravatura" em que se encontrava a enorme maioria da população seria preciso um milagre. Esse milagre, para mim, aconteceu: chamou-se Arte.

Desde muito cedo foi notória a minha capacidade para desenhar. Essa paixão levava-me a passar horas perdidas, nos campos, a desenhar na terra, nas cascas de árvores, enfim, em todo o lado onde uma linha pudesse existir e fazer sentido ao lado de outra linha. Hoje continuo a desenhar muito, mas em papel. Tive a enorme sorte de ter sido protegido por um abade do mosteiro local que percebeu que eu tinha talentos singulares. Não só me deu condições para desenvolver o meu talento como tomou a seu cargo a minha educação. Aprendi a ler apenas aos 18 anos, com muito esforço, mas essa sorte nem os meus irmãos nem a esmagadora maioria das outras crianças tiveram. Entretanto, tinha começado a trabalhar em várias oficinas de escultura, tentando aprender esse difícil mister de formar o espaço, de o interrogar, de o inverter, de substituir um objecto pela sua sombra. Lentamente, fui desenvolvendo as minhas capacidades técnicas e artísticas: foi essa a minha educação artística. Com 20 anos fui trabalhar nas esculturas que estavam a ser realizadas para a ala oeste da Catedral de Naumburg. Fui encarregado, pelos Mestres, de trabalhar na execução das duas estátuas de dois dos patronos fundadores daquela Igreja: Ute e Ekkehard II.

Foi a minha primeira grande obra. Nos anos seguintes, a minha capacidade ia aumentando ao mesmo tempo que a confiança que depositavam nas minhas realizações ia sendo mais significativa. Foi um longo e penoso caminho, uma escola de humildade e perseverança, onde a recompensa pelo nosso esforço e excelência do nosso trabalho era o anonimato, escondido atrás do nome dos poucos Mestres que, então, eram reconhecidos como tal. Mas têm sido exactamente esses anos de duro trabalho na sombra que me têm permitido transformar a dificuldade em aprendizagem: diariamente me confronto com a dificuldade, a impotência, o fracasso; e diariamente tento aprender e ultrapassar-me.

Motivado pela necessidade de trabalho, pela curiosidade pela escultura que se fazia noutras partes do mundo e pelo desejo de aventuras, próprio da minha juventude, passei vários anos a viajar. Trabalhei, por exemplo, durante algum tempo em algumas esculturas na Catedral de Reims.

Sentindo-me muito curioso pelo que estaria a acontecer no "berço do Ocidente", do outro lado dos Alpes, dirigi-me a Itália onde, em Lucca, por volta de 1406 a 1407, tive a enorme ventura de trabalhar na execução do Túmulo de Ilaria del Carretto, do Mestre Jacopo Della Quercia.

Jacopo Della Quercia era um nome maior da escultura desse período, embora muito menos conhecido do que alguns seus contemporâneos. A sua escultura possuía uma qualidade formal irrepreensível aliada a uma serenidade e sentido de Beleza inultrapassável. Para mim, vindo do frio Norte e da dureza implacável da escultura que na Alemanha se fazia, poder colaborar nesta peça de "pura Beleza" foi uma revelação. Mais do que a natureza da pedra que em Itália se usava, o imaculado e cristalino mármore branco, ao contrário dos opacos calcários da minha terra, foi a qualidade ofuscante da luz meridional que me enfeitiçou: era possível, com o mesmo rigor e dureza técnica, extrair da dura pedra o suave e eterno sorriso de quem dorme para não mais acordar. Esses anos em Itália, onde haveria de voltar mais tarde, mudaram por completo a minha visão daquilo que sempre amei acima de tudo: a possibilidade de pôr no mundo uma escultura válida. O mundo já tem suficientes objectos inúteis e sem razão para existirem.

Com Riemenschneider

Regressando à minha origem, a Francónia, retomei o meu caminho em busca de trabalho em condições que me ensinassem alguma coisa. Procurava ardentemente um Mestre, alguém que me mostrasse qual o sentido da minha busca. Um dos grandes Mestres desse tempo, que admirava com o fervor infinito com que ainda hoje admiro, era Tilman Riemenschneider, o Mestre de Würzburg. O meu sonho de jovem era poder um dia trabalhar com ele e, sorte minha, com a influência do meu protector, consegui ser contratado pelo Mestre. Esses foram os anos de maior felicidade da minha vida, os meus verdadeiros "anos de formação". Foram dias inesquecíveis em que a honra e o privilégio de trabalhar com aquele que considerava o maior Mestre-Escultor de toda a Alemanha me encheram da maior alegria que se pode ter: saber que se está a tomar parte, mesmo que ínfima, na criação de um momento de eternidade, de um momento em que a superfície da pedra ou da madeira ficará para sempre ferida pela luminosa violência da perfeição. Com ele, aprendi como o vento passa pelos cabelos e pelas roupagens de pedra dos santos, se for soprado pelos olhos visionários de quem acredita nos limites intemporais e permanentes da Escultura. Aprendi a lidar com os meus limites, com os limites da matéria, e a transformar esses limites numa marca da passagem do sopro que transforma o peso da matéria na leveza do espírito. Não há magia aqui, apenas o trabalho, a sabedoria e a experiência. Só a certeza de que, apesar de os objectos não existirem, de não ser possível acreditar na sua existência, de apenas serem uma possibilidade e não uma certeza definitiva, eles são a única maneira que temos ao nosso alcance de mostrar um pensamento no espaço. Não conhecemos outro modo, estamos condenados ao objecto, à sua construção. Por isso, e essa foi a enorme lição que aprendi com Tilman Riemenschneider, temos de ser absolutamente exactos na sua formulação espacial e na sua realização, para que a ideia que nos habita possa ser transmitida claramente, com o máximo rigor. Para esse grande Mestre trabalhei, sobretudo, a executar os cabelos e as mãos dos Santos. Essa tarefa, reservada aos aprendizes mais dotados, deu-me uma noção muito exacta de como capturar a passagem do sopro (a Voz de Deus) na leveza dos cabelos e nas folhas das árvores e de como testemunhar a força desamparada e efémera dos batimentos do coração no interior de um corpo, essa outra forma de Voz de Deus, a força que dá sentido a todos os gestos que as nossas mãos executam (ou assumem) ao longo da nossa passagem na terra. Trabalhei nas esculturas que executámos entre 1497 e 1510 para o Túmulo do Imperador Heinrich II e Imperatriz Kunigunde, na maravilhosa Catedral de Bamberg, no Altar do Sangue Sagrado, em Rothemburg Ob der Tauber, e no Altar de Maria, em Creglingen.

Por volta de 1530, depois desses maravilhosos e privilegiados anos, dirigi-me para França. Uma das obras mais fascinantes desse tempo era a permanente construção da Necrópole Real na Basílica de St. Denis, perto de Paris. Nessa catedral, uma das primeiras grandes arquitecturas do Cristianismo Europeu, estão reunidos, num trabalho sem fim nem começo, todos os túmulos dos monarcas de França, desde os primeiros reis Merovíngios. Entre os muitos escultores que nessa grandiosa obra participavam, encontrava-se um famoso Mestre florentino naturalizado francês e estabelecido com o seu irmão, igualmente escultor, em Tours, Jean Juste (Giovanni di Giusto Betti). A sua arte trouxe uma nova e extraordinária visão à arte funerária. Depois de algumas diligências, consegui ser aceite por ele para trabalhar na sua oficina na execução do túmulo de Louis XII e de Anne de Bretagne.

Com Jean Juste

Essa magnífica obra representou a passagem mais maravilhosa que se possa imaginar do hieratismo e rigidez das representações arcaicas e góticas da morte para a assunção da imagem da morte enquanto representação realista de um momento: o momento em que o sono se transforma num caminho sem regresso. Giovanni Giusto soube, como ninguém, transportar essa vivência de um momento, de um segundo no tempo, para a intemporalidade da pedra (e a intemporalidade da Escultura). O momento em que Louis XII e Anne de Bretagne expiram é transformado numa lenta imagem em que assistimos, impotentes, à irremediável fuga de toda a cálida experiência do mundo. Esse sopro, de que já falei, abandona-os no momento em que contemplamos a sua desprotegida nudez. Os corpos foram representados com o maior realismo possível enquanto cadáveres. Esse realismo perturbador propunha aos cristãos uma reflexão nova sobre a morte e a ressurreição. Nessa magnífica obra, tive a enorme honra de talhar a cicatriz, no mármore, deixada no ventre do Monarca depois de lhe retirarem as vísceras, como era ritual, nesses tempos, nas cerimónias funerárias das camadas mais altas da sociedade. Esta cicatriz ainda hoje habita o meu trabalho de escultura. Tão longe me senti, ao trabalhar nessa estátua jacente, do trabalho de Jacopo Della Quercia: o que numa escultura era a idealização da eternidade do sono, na outra era a constatação da sua efemeridade.

Depois de terminada essa obra, ainda tive o privilégio de trabalhar com o grande Mestre francês Germain Pilon na execução do primeiro túmulo de Henri II e Catarina de Médicis, terminado em 1570.

Mantendo o realismo da representação, conseguiu oferecer uma imagem serena da morte, apresentando os monarcas num transe de passagem sem que qualquer ideia de dor ou sofrimento se imponha nessa visão. A própria Catarina de Médicis, a rainha inconsolável com a prematura morte do marido, se fez representar enquanto futuro cadáver, acompanhando com a sua beleza e serenidade o sono sem retorno do seu esposo. Nesta magistral obra de escultura, fui encarregado da difícil tarefa de executar a mão de Catarina de Médicis que pousa suavemente no seu seio. Esses dedos ainda hoje fazem parte dos meus desenhos.

Depois dessa longa estadia em França, senti de novo falta da ofuscante e excessiva luz do sul, a luz que transforma tudo o que é real numa hipérbole da realidade: o exagero de realidade, aqui, parece afinal ser exactamente a sublimação desse real. Mas não é, é apenas o desvio que exige de nós um muito maior esforço para ultrapassar a evidência da realidade. O que se passa debaixo da crueza da luz do sul é uma forma de benevolência mascarada de impaciência: aceitamos as imperfeições do real com a mesma voracidade com que devoramos (ou desejamos devorar) as suas perfeições. È nesse implacável balanço entre peso e leveza, entre agrura e doçura, que os povos do sul sempre construíram, no meio do maior caos, a grandeza arcaica do seu destino. E isso não é coisa acessível à compreensão dos povos do norte, a menos que façam um grande esforço para entenderem a beleza das enormes diferenças que existem entre estas duas naturezas. Dirigi-me pois, como muitos alemães já o fizeram, a Roma. Nesta estrondosa e esmagadora cidade, excessiva no seu fatal confronto entre a extrema e desordenada vitalidade e a impassibilidade imponente e incontornável das ruínas (a permanente intrusão do passado, "a força do passado", como diz Pasolini...), estava em curso, por aqueles dias, a imparável erupção do Barroco: grandes pintores que eram simultaneamente geniais escultores e grandiosos arquitectos disputavam entre si o já sobrecarregado espaço urbano e a almejada atenção dos Mecenas, laicos e do clero. Essa, aliás, era já a efervescente situação da arte em Itália desde há muitos anos. Bem-aventurado o país onde os ricos mais inteligentes lutam pelo privilégio de poder ajudar os artistas a criar eternidade!...

Com Bernini

Na minha discreta posição de recém-chegado, não estava em condições de competir com esta esmagadora avalanche de entusiasmo e de geniais artistas. Quis, no entanto, o destino que, de forma inesperada, me cruzasse com a oficina de Gian Lorenzo Bernini, provavelmente o mais genial de todos os geniais artistas daquele tempo. Ainda no início da sua fulgurante carreira, Bernini dedicava-se à ousada realização do impossível: captar o segundo mágico em que um corpo jovem e quente se transforma numa árvore imóvel. Esta desmesurada ambição haveria de provar ao mundo que só houve, até hoje, um artista capaz do assombro de captar esse preciso segundo da transformação da pedra em vento. Não se trata somente de um prodígio técnico (assombroso!) nem de um prodígio visual (esmagador!). Trata-se do prodígio de transformar a matéria em emoção, em energia, em leveza, em vento. Trabalhei na sua oficina, por volta de 1622 e 1623, na dificílima realização da escultura Apolo e Dafne.

Foram dias do maior espanto e emoção e, até hoje, tenho a impressão de que esse tempo não existiu, que tudo não passou de um sonho ou de uma visão, tão grande era a irrealidade e a improbabilidade daquele projecto. Toda a minha aprendizagem com Tilman Riemenschneider acerca da leveza, do espiritual, da desmaterialização, da ascensão, da perda de peso, da espiritualização da matéria, se confrontou aqui com uma forma de confirmação quase mágica: a transformação, neste tumultuoso sul de Bernini, assumia uma realidade para além do que me era conhecido até aquela altura. Nunca tinha pensado ser possível que um corpo investido pela morte e imbuído do seu próprio trágico destino pudesse transformar-se, perante os nossos olhos, num vento carregado de sensualidade, de delicada sexualidade, de mórbida volúpia. Esta assombrosa energia produzia um efeito absolutamente esmagador em quem contemplava esta obra. Eu próprio, apesar da minha já longa experiência, não pensava que tal coisa fosse possível, parecia-me (como ainda hoje me parece) um milagre total. Era preciso ter uma coragem, uma loucura, uma audácia, uma ambição íntima avassaladora para conseguir realizar uma escultura assim. Mas Bernini tinha tudo isso como poucas pessoas alguma vez tiveram e a escultura existe, deixando todos os que a contemplam imersos num silêncio extático, absolutamente sem saber o que dizer, com os olhos turvos de emoção, ouvindo o silencioso milagre dos ramos secos a estalar quando a ninfa se transforma em árvore. E esta sucessão de emoção, deslumbramento e impotência repete-se, infinitamente, de cada vez que os olhos silenciosos de alguém pousam nesta pele branca, sensual, prestes a explodir, prestes a desaparecer. Como é possível representar assim os músculos e as veias a latejar que se escondem por baixo dessa suave seda branca? Como é possível aprisionar assim a vida, para sempre, num silencioso manto imaculado? É uma imagem muito difícil de aguentar, é uma emoção demasiado grande; chama-se Paixão. Um amigo meu, um arquitecto que também trabalhava connosco, dizia-me sempre: "Bernini é um prodígio técnico mas também um prodígio humano total. Só uma pessoa que tenha feito um pacto com o diabo é capaz daquilo. Não é deste mundo! Qualquer escultor chora ao ver esta escultura." E assim foi e assim é.

Depois de terminada essa obra fiquei, obviamente, arrasado. A energia de Bernini e a força criativa que emanava deixavam-nos a nós, seus assistentes, exauridos. A minha vida no sul tornou-se demasiado excessiva, e vi-me numa situação de esgotamento total em que pus em causa tudo o que até então tinha feito, ou tentado realizar. Não me restou senão admitir que não tinha nascido no sul nem era feito para viver no sul nem aguentar a sua tremenda energia ao mesmo tempo criativa e destrutiva: o sul é onde se exerce a arte de aceitar o caos como princípio criativo, se para tanto houver força, energia e saúde... Fugindo do terrível futuro que parecia aguardar-me, dirigi-me de novo à minha tranquila e amada Alemanha, ansiando pelo silêncio íntimo que nos espera na bruma das suas florestas. A Alemanha sempre foi o local da alma, o local onde o nevoeiro, a falta de luz e a pele branca dos seus habitantes nos prometem a existência de um mundo interior, não apenas um mundo virado para fora, como no sul. Passaram-se alguns anos em que vivi sobretudo do dinheiro que tinha conseguido acumular em Itália, trabalhando para Bernini. Executei aqui e ali alguma coisa, mas nada de muito significativo. Estava triste por me ver assim apanhado num beco que eu próprio tinha criado: ter-me deixado enfeitiçar pelo sortilégio da escultura de Bernini e pela sensualidade fugaz mas devoradora do sul. Tudo isto me dava o terrível sentimento de ter traído toda a minha vida, o meu trabalho, sobretudo, todos os grandes Mestres que tinha adorado no passado e me tinham ensinado tudo sobre a espiritualidade na Escultura. O meu maior mal-estar era, evidentemente, a má consciência em relação a Tilman Riemenschneider.

Só por volta de 1795 senti que, finalmente, estava a encontrar de novo o caminho que tinha perdido. Esses eram os anos da "revolução romântica" e todo um grupo de filósofos, pensadores, poetas e artistas apresentava progressivamente ao Mundo uma visão do Homem enquanto parte de um destino idealizado, em comunhão com um Universo não exclusivamente divino, mas sobretudo enquanto milagre de uma razão divinizada, de um qualquer milagre que pusesse o Homem, finalmente, no seu lugar de "sonhador do Mundo". Esse novo olhar apresentava-nos, de novo, o Mundo como um todo indivisível, como os Antigos queriam, em que tudo se relacionava com tudo, tudo fazia parte de tudo, tudo revelava o significado de tudo, a mais ínfima parcela era um reflexo da mais incomensurável totalidade. Essa imagem de uma comunhão universal da razão com o sonho, que já se tinha perdido há muito, interessou-me de tal maneira que me aproximei, dentro das minhas limitações de formação e educação, desse grupo de novos pensadores. Entre eles havia um jovem engenheiro de minas, muito entusiasmado e sensível, que parecia ser uma aparição de um outro mundo. Chamava-se Georg Philipp Friedrich von Hardenberg mas escolheu o nome Novalis para renascer para o Mundo.

Com Novalis

A sua juventude não o impedia de ser dono de uma visão absolutamente sábia de todo o conflito que existe entre o interior do nosso corpo e o paraíso, da nossa condição de sonho entre o céu e a terra, durante um efémero mas delicioso momento. Ele descreveu da forma mais sábia uma Humanidade que ainda dorme um sono profundo nas margens de um sombrio rio de ouro, rodeado das mais altas e escuras montanhas. Esta Humanidade adormecida, entre lençóis de leite e de mel, exige de nós que falemos baixo, para não a despertarmos cedo de mais... Tornámo-nos amigos, lentamente, e mais uma vez encontrei alguém que me orientava, que dava sentido ao fluxo dos meus pensamentos. Ele escrevia em fragmentos de uma lucidez inquietante e essas palavras serviram-me de modelo para tudo o que eu pensava sobre o mundo. Pareciam-me misteriosamente escritas por mim próprio, noutro tempo, há muito tempo. A nossa relação foi de um crescente envolvimento até ao ponto de eu achar que as suas palavras me tocavam tão fundo na alma que eu tinha de as reescrever. Decidi traduzir para português uma selecção dos seus pensamentos fragmentados, pó de floração levado pelo vento, ideias que fecundam o mundo se caírem no terreno certo. Porquê português? Porque essa nova incursão no sul seria uma forma de eu resolver o meu sentimento de culpa: dividido entre dois mundos, não me resta senão oferecer a um o que o outro tem de melhor e assim criar um terceiro mundo, onde eu sou possível. Apenas a abrupta morte, aos 29 anos, em 1801, deste jovem visionário veio interromper a criação de um imenso livro, o livro que explicaria a origem das sombras que escondem a alegria do nosso coração quando não conseguimos olhar o mundo a sorrir, como ele fez. Chorei a sua morte mas, ao mesmo tempo, esforcei-me por pensar, como ele, que tudo é um delicioso e efémero momento, que "todas as dores têm o seu máximo e depois se atenuam" e que "estamos perto do acordar quando sonhamos que sonhamos".

Tendo permanecido na Alemanha, abraçado para sempre a essa "Mãe pálida", ainda trabalhei com Philip Otto Runge, em 1808, na elaboração dos desenhos e gravuras do seu longo projecto As horas do dia.

Essa foi a minha escola tardia de desenho, pois até então nunca tinha trabalhado em desenho tão sistematicamente, de uma forma tão rigorosa. Foi uma maneira de continuar as palavras de Novalis, a sua crença na "manhã do mundo", na "infância do Mundo", enquanto princípio gerador que nos acolhe todas as dúvidas. Este artista ensinou-me a desenhar o Mundo com a geometria cristalina de uma imensa catedral. Esse meu caminho de reflexão e de disciplina do desenho foi novamente interrompido pela prematura morte de Philip Otto Runge, em 1810. Mais uma vez me vi desamparado, com a sucessiva morte de duas pessoas que, finalmente, me permitiam a reconciliação com o meu passado, a minha formação, a minha natureza mais íntima.

Nestes últimos anos tenho, finalmente, tentado trabalhar em coisas minhas. Aproveito tudo o que aprendi com eles, tudo o que me ensinaram, mesmo sem o querer (e sem o saber), como é comum acontecer em todas as aprendizagens e também em todas as escolas e universidades, não é verdade? Tento fazer, finalmente, o meu caminho. Não estou certo de o estar a conseguir ou de vir a consegui-lo algum dia. Depois de tantos anos a trabalhar com grandes Mestres, estou em situação de, pelo menos, ter esperança de conseguir fazer alguma coisa minha, de conseguir criar um dia alguma escultura válida. O tempo o dirá, ainda só agora estou a começar.

No entanto, não estou angustiado. Sei que estamos todos entre o céu e a terra. E, seja como for, "estamos sós com tudo aquilo que amamos", como escreveu Novalis.

Este texto é uma versão adaptada, para o PÚBLICO, de uma palestra que Rui Chafes deu com Maria Filomena Molder no dia 6, uma das 100 Lições com que a Universidade de Lisboa está a celebrar o seu centenário. Todas as palestras estão disponíveis em vídeo em http://centenario.ul.pt/ensino/videos-100-licoes

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