Um Natal no Texas

O Presidente americano não tem limites, o que é um sério problema, e parece revelar alguma dificuldade em perceber a realidade.

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1. Numa mesa cheia de britânicos, outros europeus, alguns americanos e brasileiros, há palavras que não podem ficar de fora nem no Natal, tal como as rabanadas ou o christmas pudding. O que vai acontecer ao "Brexit"? Ninguém sabe nem ninguém se atreve a apostar. O mais recente disparate de Trump? É irresistível, por mais dramático que seja. Também não. O que vai acontecer ao Brasil de Bolsonaro? Há várias hipóteses sobre a mesa. Mesmo assim, nada consegue alterar o ambiente festivo de um subúrbio de Houston onde as crises ficam à porta e se fazem concursos para ver qual é o jardim com a iluminação natalícia mais arrojada, O prémio foi naturalmente para uma casa americana que os europeus são bastante mais sóbrios.

2. No vidro de trás do carro da minha filha ainda se pode ler “Beto for Senate”. Daqui a algum tempo, porventura na minha próxima visita, talvez já se possa ler “Beto for President”. O ideal, discute-se apaixonadamente, seria ter Michelle Obama como vice. Um “dream ticket” que provavelmente nunca acontecerá, embora a anterior primeira-dama seja hoje a mulher mais admirada da América. A mesma América que elegeu Trump há dois anos. Mas é Natal e sonhar é permitido. Ou seja, nem tudo está perdido neste grande país que alguns ainda acreditam que pode e deve voltar a ser “uma força para o bem no mundo”. Uma nação particular, que não nasceu de uma tribo ou de um território, mas de um conjunto de ideais, o primeiro dos quais a liberdade de cada um prosseguir a sua vida em busca da felicidade. Entretanto, o Governo está parcialmente paralisado porque Trump fez birra por causa do muro que quer construir na fronteira com o México, exigindo cinco mil milhões de dólares que o Congresso não está disposto a dar-lhe. Agora ameaça encerrar totalmente a fronteira com o México. O Presidente americano não tem limites, o que é um sério problema, e parece revelar alguma dificuldade em perceber a realidade. Nos jornais, ensinam-se métodos para que os funcionários públicos que estão sem receber salário consigam superar as dificuldades inerentes. Mas isso não impede que centenas de milhares de famílias paguem por uma guerra que não é a deles e vivam o Natal com a ansiedade de quem não sabe o que acontecerá ao seu salário no dia de amanhã.

3. Mas Washington fica longe. As minhas netas deliciam-se com a visita a um rancho gigantesco transformado em museu onde se pode acompanhar a vida dos primeiros colonos que chegaram à região na segunda década do século XIX e que foram progredindo numa típica história de sucesso e de oportunidade americana. A primeira, muito pobre, habitação. A segunda, já com o conforto e a amplitude próprios da época. O negócio foi o gado. A terceira, luxuosa, com a banca a somar-se à prosperidade da família. A quarta, finalmente, uma mansão digna de quem acabou por descobrir petróleo no próprio terreno. Tudo é mantido fielmente igual ao que era. Apenas os cowboys, os cavalos e os touros são actuais, para gáudio dos visitantes. As crianças aprendem História ao vivo. As guias mostram os dois lados da realidade: o que foi bom e o que foi mau ou injusto. Mas não, felizmente, em versão politicamente correcta. Descubro que as minhas netas mais velhas já têm um conhecimento muito razoável da História americana. É assim também que se constrói esta grande democracia às voltas com o seu destino mas capaz de resistir a um momento particularmente mau da sua História.

4. As atenções já estão viradas para 2020, enquanto Trump tenta disfarçar as suas dificuldades internas – que são bastantes – com o cumprimento de promessas eleitorais cujo efeito é muito mais negativo lá fora do que cá dentro. Retirada unilateral da Síria e, para breve, do Afeganistão, o que já levou à demissão do chefe do Pentágono, o general James Mattis, no qual os aliados confiavam para manter alguma racionalidade na política de segurança e defesa dos EUA e garantir a preservação da NATO. Mais um calafrio e mais uma preocupação para a Europa. A França tem tropas no terreno. O Reino Unido também. As forças anti-Assad que os EUA incentivaram, a começar pelos curdos, ficam indefesas. Erdogan rejubila. A mensagem para os aliados da América no mundo inteiro é: não confiem em nós. Mattis estava pelos cabelos, já se sabia. Passou o tempo a tentar tranquilizar os aliados sobre as decisões intempestivas do Presidente, para quem a palavra “aliado” não deve sequer existir no seu dicionário mental. “America First” é mais “America Only”. Mattis desistiu. Trump, em vez de agradecer-lhe os serviços prestados, tentou humilhá-lo publicamente, antecipando em dois meses a data anunciada para a sua saída. Como escrevia o Wall Street Jounal, foi demasiado longe, até para os americanos que se mantêm fieis às ideias mais extravagantes e perigosas da sua campanha. O exército é uma instituição respeitada nos EUA. Nem a visita surpresa que resolveu fazer a uma base secreta das tropas especiais americanas no Iraque ajudou a desviar as atenções. Como sempre acontece com este Presidente, a visita teve um ligeiro percalço: as fotografias que Trump divulgou podem revelar a localização da base. Decididamente, Trump não nasceu para ser Presidente do país mais poderoso do mundo. A história das suas divergências com o secretario da Defesa fala por si. Quando Trump mandou tropas para a fronteira com o México para impedir a entrada de imigrantes, depois de tentar demovê-lo, Mattis foi arrastando os pés até à última ordem do Presidente e ao aviso de que as tropas se defenderiam das pedras com balas. Inquirido pelos jornalistas, Mattis não poderia ter sido mais directo: “Por amor de Deus, eles nem sequer estão armados”. Apenas um exemplo entre muitos. Resta saber quem se segue no Pentágono. Haverá sempre alguém, mesmo que a tarefa de encontrar quem queira trabalhar com Trump se esteja a revelar cada vez mais difícil.

5. Já não falta tudo para 2020, a próxima oportunidade para corrigir este caminho perigoso. A responsabilidade está nas mãos dos Democratas e há tantas cartas em cima da mesa que ainda é muito difícil saber se vão conseguir escolher o ás de trunfo. Joe Biden é o mais popular, de longe. Mas os seus 76 anos, somados a uma carreira política de quase 50 e a um coração demasiado perto da boca (são famosas as suas gafes) desaconselham a sua candidatura, numa altura em que os eleitores anseiam por coisas novas, mesmo que lhes possa sair Trump na rifa. Bernie Sanders, que ia destronando Hillary nas primárias de 2016, padece do mesmo peso dos anos e representa a ala mais à esquerda dos Democratas – dificilmente seria um candidato vitorioso, mesmo que o partido se tenha chegado bastante à esquerda com a eleição de Trump e os movimentos populares de rejeição que alimentou. É o segundo mais popular mas a grande distância de Biden. Diz a imprensa americana que o seu objectivo actual é minar qualquer hipótese de uma candidatura do fenómeno texano Beto O’Rourke. Serão da sua iniciativa as recentes notícias vindas a lume sobre um registo de votos no Congresso que mostra Beto a votar algumas vezes aos lado dos republicanos. Um “defeito” que facilmente se poderia transformar numa virtude, porque as presidenciais não prescindem do eleitorado do centro, que não se revê totalmente num partido ou no outro. Beto é jovem, tem carisma, ganhou dimensão nacional quando desafiou Ted Cruz, o hiper-conservador senador do Texas, nas eleições de meio mandato de Novembro passado e quase ia ganhando, num estado onde eleger um democrata é uma raridade. Beto já mostrou que não tem medo nem das palavras nem das ideias, sejam elas mais ao centro ou mais à esquerda. O seu ar vagamente kennediano (é de origem irlandesa), a sua juventude e o seu carisma nato são trunfos poderosos a seu favor numa América que ainda não desistiu totalmente de ser uma cidade no alto da colina, iluminando o mundo. Como escreve Jake Sullivan no Carnegie Endowment, não nos esqueçamos que, ao longo da sua História, cada grande mudança não ocorreu em tempos de desorientação mas do que veio a seguir. “O New Deal seguiu-se à Grande Depressão, como o Plano Marshall se seguiu à Segunda Guerra”. “Quando Trump sair da Casa Branca, os EUA terão, mais uma vez, a oportunidade para seguir um novo caminho.” Até lá, “os nossos parceiros não vão desistir de nós”. É Natal. Há que ter esperança.

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