A incrível história do jornalista que enganou meio mundo

Um dos meios de comunicação mais prestigiado da Alemanha, a revista Der Spiegel, viu-se a braços com o seu “pior pesadelo”. Claas Relotius falsificou factos, citações e personagens.

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Claas Relotius Lusa/EPA

Era visto como um jornalista jovem, brilhante e com uma ascensão meteórica, mas, afinal, inventara personagens, copiara citações, montara personagens com base em entrevistas, descrevera lugares que não existiam. O caso do jornalista alemão Claas Relotius não é único. O que é marcante nesta história é como falsificou factos, citações e personagens em pelo menos 14 reportagens que foram publicadas na revista Der Spiegel, conhecida pelo seu rigor e que tem o departamento de fact-checking (verificação de factos) mais famoso da Europa e um dos maiores do mundo. 

Este departamento, com uma equipa fixa de cerca de 80 pessoas e com alguns freelancers, é muitas vezes apresentado como um exemplo e os seus responsáveis são muitas vezes entrevistados — ainda recentemente foi referido nos sites da Columbia Journalism Review e do NiemanLab. Isto porque a equipa funciona de forma particular: está integrada na estrutura da redacção e é formada por especialistas nas áreas e que espelham a divisão por secções da revista: política, economia, relações internacionais, sociedade, ciência, cultura, desporto.

Estes especialistas verificam números, percentagens, grafias, distâncias, citações, datas... Tudo para fazer valer o lema do fundador da Spiegel, Rudolf Augstein, que se vê no enorme átrio do edifício da revista, mesmo na margem do Elba, em Hamburgo: “Sagen, was ist”, qualquer coisa como: “Dizer as coisas como elas são.”

Porém, no caso de Relotius, este sistema não funcionou. E com várias destas reportagens o jornalista, que trabalhava para a revista desde 2014 em regime de colaboração e a tempo inteiro desde 2017, acumulou prémios, incluindo quatro vezes o título de repórter do ano, não só nacionais como internacionais. Foi “jornalista do ano” da CNN em 2014 e integrou a lista dos “30 under 30” na área dos media da revista Forbes. Recebeu o último prémio semanas antes de ser descoberto.

O que se seguiu foi “o pior pesadelo” que pode acontecer a uma publicação e à sua credibilidade e o pior escândalo na imprensa alemã desde que a revista Stern publicou o que seriam diários de Hitler em 1983 (afinal, tratava-se de uma falsificação). 

“Medo de falhar”

Pior, ao pesadelo da invenção de personagens, sítios, falsificação de declarações, reportagens baseadas em plágios e fragmentos de depoimentos em vídeo ou nas redes sociais, seguiu-se outro: o jornalista recolheu fundos para ajudar dois órfãos sírios de que falava num artigo que escreveu e ficou ele próprio com o dinheiro.

Disse mais tarde que os tinha ajudado a ser adoptados na Alemanha, mas segundo o fotógrafo turco que trabalhou com Relotius nessa reportagem (e que só agora leu o artigo) as duas crianças não eram irmãs e uma delas, o rapaz, que não é órfão, continua na Turquia. Aliás, o fotógrafo só conheceu o rapaz. 

Claas Relotius, de 33 anos, foi despedido, está a ser processado pela revista por ter ficado com o dinheiro e tem de devolver os prémios. Depois de ser descoberto, disse que estava doente e tentou explicou o que fez: “Não procurava o sucesso seguinte. Foi por medo de falhar.”

Relotius segue-se a outros jornalistas ficcionistas, como Janet Cooke, do Washington Post, que em 1981 ganhou um Pullitzer (o maior prémio de jornalismo dos Estados Unidos) com uma história de um miúdo de oito anos viciado em heroína — teve de o devolver pouco depois e confessou que o rapaz não existia e era tudo inventado — ou Jayson Blair, do New York Times, que foi descoberto em 2003: tinha plagiado e inventado conversas, factos e personagens. Cooke mudou de profissão, recusando dar entrevistas e dizendo apenas que o que faz “não é baseado na escrita”. Blair, que se assumiu como doente bipolar, escreveu um livro sobre a doença e hoje é life coach

Aproveitamento político

Numa era de desconfiança em relação aos media, o caso de Claas Relotius foi aproveitado. Na Alemanha, pelo partido AfD (Alternativa para a Alemanha, extrema-direita), que o apresentou como uma prova da “imprensa mentirosa”, um epíteto usado em várias épocas para descrever inimigos (imprensa estrangeira durante as guerras, por exemplo, foi usado pelos nazis para descrever a imprensa dos inimigos, fossem judeus ou comunistas). 

Um político da AfD, Götz Frömming, escreveu no Twitter: “Ironicamente a Spiegel, o autoproclamado líder dos media que gosta de criticar Trump e a AfD, tem publicado durante anos as melhores Fake News via Relotius.”

Há um mentiroso, mas qual?

A queda de Claas Relotius foi precipitada pela desconfiança de um jornalista que foi destacado para trabalhar com ele num artigo. Juan Moreno tinha lido, há anos, um artigo de Relotius em Cuba em que este falava do primeiro contabilista do país que era consultado por engraxadores. A história pareceu inverosímil a Moreno, que por isso nunca mais leu os textos do colega do mesmo modo.

Quando foi destacado para fazer um artigo em conjunto com Relotius, Moreno não ficou contente. E, ao receber a parte do texto escrita pelo colega, desconfiou de algumas passagens. Fez perguntas aos editores, estas foram passadas a Relotius, que respondeu com o que pareciam provas e com e-mails trocados com algumas das fontes. Agora sabe-se que os forjou; na altura, ninguém imaginou que falsificasse emails. 

A dada altura, tornou-se claro que havia um mentiroso — e parecia que o mentiroso era Juan Moreno, nascido em Espanha, freelancer, a viver em Berlim e não na cidade-sede da Spiegel, Hamburgo, e por isso com uma muito menor relação com os colegas. Já Relotius era uma das pessoas mais simpáticas, se não a mais simpática, da redacção.

Juan Moreno aproveitou uma viagem aos EUA e fez 770 quilómetros para ir ao local da reportagem de Relotius contactar dois dos protagonistas da história, “vigilantes” que faziam patrulhas informais na fronteira entre os EUA e o México. No artigo, Relotius descrevera como passara dias e noites com eles.

Os dois homens ficaram surpreendidos: nunca tinham falado com o jornalista alemão, disseram a Moreno, em frente a uma câmara (este não correu riscos e gravou tudo). Nunca o tinham sequer visto. 

Moreno contou mais tarde as reacções de alguns colegas e editores: “Acreditava mais facilmente se me dissessem que a minha mãe tinha inventado uma história, do que se me dissessem que Relotius o tinha feito”, disse um. Outro confessou que pensava que prémios recebidos por alguns colegas eram exagerados: “Relotius era o único que achávamos mesmo que merecia.” 

Spiegel versus Fergus Falls

A partir daí, foram descobertas mais fraudes nos artigos de Relotius. 

Num número com o lema do fundador na capa, a revista faz um penoso mea culpa explicando o que se sabe ao certo que foi mentira, o que ainda está a ser verificado, as falhas, o que não poderia ter sido previsto, a versão de Moreno. 

Um dos artigos mais curiosos explica o modo como a revista tentou lidar com um dos casos mais problemáticos, uma reportagem feita por Relotius em Fergus Falls, no estado americano do Minnesota, que está cheia de inexactidões, grandes e pequenas, e que culminava num enorme cliché sobre uma cidade rural, fechada e pró-Trump. 

O correspondente da revista em Washington, Christoph Scheumermann, foi enviado para fazer uma nova reportagem no local. Outros jornais, nacionais e internacionais mandaram lá jornalistas, explicava o New York Times num artigo intitulado “Cidade do Minnesota difamada por jornalista alemão está disposta a perdoar”.

Este caso foi especialmente problemático por duas razões: uma jornalística, porque houve residentes a contactar a Spiegel a dar conta dos erros flagrantes no artigo, mas foram ignorados (a revista foi “tagada” no Twitter, mas nenhuma chefia viu esta denúncia; isto foi há meses); outra diplomática, pois o artigo deu motivo aos EUA para fazer uma queixa contra a revista por antiamericanismo. O embaixador dos EUA na Alemanha escreveu agora uma carta à revista e disse publicamente que o caso provava “um preconceito institucional” da Der Spiegel contra a América.

A revista defendeu-se explicando que o sistema de fact-checking está desenhado para reduzir a necessidade e correcções, não para apanhar repórteres mentirosos. Esse seria o trabalho da editoria. 

Bastava um telefonema

Mas dois habitantes de Fergus 
Falls, que leram o artigo com base numa tradução automática e publicaram online “os 11 erros mais flagrantes” de Relotius, dizem que na maior parte dos casos “um telefonema teria sido suficiente” para ver que havia erros. (Nos EUA, o trabalho dos fact-checkers inclui contactar as fontes para fazer a verificação das citações.)

As invenções começam logo na descrição da entrada da cidade: “Bem-vindos a Fergus Falls, terra de gente mesmo boa” (só a primeira parte está no sinal). Ao lado estaria um letreiro (“com metade da altura, mas impossível de ignorar”) a dizer “Mexicanos, mantenham-se longe” (este letreiro nunca foi visto por ninguém) e para chegar à cidade passava-se por “uma floresta onde parecia poder haver dragões”. Fergus Falls fica numa planície e o autocarro não passa por qualquer floresta.

A reportagem continua com um responsável da administração local sobre quem Relotius tinha três factos correctos (idade, universidade em que estudou e local onde cresceu), tudo o resto era ficção (emprego, hábitos, leituras, citações; dizia que não tinha namorada e nunca tinha visto o mar; bastava visitar a página dele no Facebook para encontrar uma foto com a companheira... junto ao mar). 

Um habitante chamado Neil Becker parece não existir, mas há um Douglas Becker, cuja foto é publicada no artigo como “Neil”, que trabalha arduamente e tem relutância em viajar. Na verdade, Douglas conhece quase todos os aeroportos dos EUA — entrega encomendas para a UPS e ainda vende discos usados em part-time. 

No artigo seguinte, o correspondente em Washington deixa escapar, a dada altura, um comentário de quase desabafo, depois de referir que Relotius esteve a viver cinco semanas em Fergus Falls, “uma eternidade em jornalismo”: “Pergunto-me porque é que ele inventou ‘Neil Becker’, quando Douglas Becker é na verdade muito mais interessante do que o cliché de um apoiante de Trump.”

Notícia corrigida a 2.1.2019: o lema do fundador da revista é "Sagen, was ist" (e não "Sagen, wie es ist" como estava escrito), e uma tradução melhor do lema será "Dizer as coisas como são" (e não "diz as coisas como são")

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