Palavras para um tempo de secura e esquecimento

Uma poesia que interroga o humano e o divino. Versos que se assumem portadores de um legado imponente, mas que se libertam do fardo da servidão, para encontrarem a sua voz, autónoma e livre, desprotegida. É o nosso livro de poesia do ano.

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A escrita deste poeta é uma causa e uma consequência da inquirição do humano e do transcendente

Sombra Silêncio é descrito por Carlos Poças Falcão como uma reunião de “poemas muito esparsos no tempo, (...) no espírito (...) e no estilo” (p. 59). Essa “Nota final”, de uma honestidade, desde logo, marcante, fala de uma recolha que “não cumpre inteiramente a ideia que faço de um livro, que releva mais de exigências arquitectónicas que de organização” (id.). Assim é. E, no entanto, mesmo os poemas aparentemente (ou realmente) específicos a um enquadramento que, na presente colectânea, necessariamente, se perdeu e que, por isso, são, efectivamente, esparsos, acabam por encaminhar-se para o cerne desta poesia: a busca por uma possibilidade de sentido para o humano, enquanto carne e espírito — “O fotógrafo trabalha num recorte de penumbras/ captando (capturando) espectros luminosos/ silêncios fugidios, movimentos, corpos tensos,/ expostos numa sombra de uma sombra de uma sombra.” (p. 47) Porque esta é uma poesia que procura sentidos, que se interroga e que, ao fazê-lo, se dirige ao mundo, interpelando o que é dele, mas também aquilo que o transcende. A escrita deste poeta é, por conseguinte, uma causa e uma consequência da inquirição do humano e do transcendente, aqui concebidos como dimensões irredutíveis. O que não quer dizer que, de repente, se iluda a dificuldade que há em saber se Deus é incomparavelmente obscuro ou incompreensivelmente simples. “Silencioso, último, sem préstimo, obscuro/ aí vem, com seu sorriso, a face arcaica: o Deus.”, lia-se já em A Nuvem (A Pedra Formosa Edições, 2000, in Arte Nenhuma (Poesia 1987-2012), Opera Omnia).

Em Sombra Silêncio, Carlos Poças Falcão propõe a necessidade de uma espécie de raciocínio indutivo, que subverte a ordem dos factores; sempre questionando, avança a seguinte hipótese, em dois versos de um dos poemas aqui coligidos: “se nada encontras/ como hás-de procurar?” (p. 39) O sujeito desta poesia assume, portanto, a sua posição enquanto agente que se apresenta despido perante a violência da questionação — “aí, na indefensão, nos entregamos e vivemos” (p. 12). Um sujeito que se concebe perante uma ordem alternativa à dispersão do concreto, da sua energia imediatista e dissipada — “Eu sou a noite/ eu sou a espera inútil, a vasilha que ressoa./ A minha alma é nova, mas espero deste sempre./ Como o deserto espera pela gota que há-de vir.” (p. 9) À concretude limitadora, esta poesia contrapõe, ou associa, uma perenidade que, ainda assim, se faz de matérias perecíveis, como uma vasilha, e de encontro a um lugar concreto, como o deserto — mas onde ressoam a informação cultural e a matriz bíblica, aspectos fundamentais nesta poesia.

Um dos poemas reunidos em Sombra Silêncio abre com dois versos especialmente reveladores: “Aprendi a ver de longe a grande árvore das crenças/ com os seus frutos de álcool e sombras desejadas.” (p.48) Esta “árvore das crenças” não é, porém, um indício de endoutrinação, nem constitui qualquer assomo de uma piedade que cometesse a falha de esquecer o “deus inquietado”(p. 52), que, pelo contrário, comparece, poucas páginas depois. Porque a poesia de Carlos Poças Falcão nunca oculta que se escreve “Daqui deste ruído” (p. 24), mesmo quando se dirige a Deus, como sucede no poema cujo primeiro verso acabado de citar, nem se recusa a ouvir o “clamor civil” (p. 30). Sendo esta uma poesia de interrogação e busca do transcendente, ela parte do terreno — “O mundo é minha língua, quando falo escuto-me outro/ e as frases desunidas, por sentidos enganados/ conduzem-me a um lugar de desencontro.” (p. 24) Contudo, também se pode dizer que a acumulação de elementos heterogéneos, difusos, e até certo elenco de banalidades, serve, paradoxalmente, para suplantar esse muro irreversível que é a taxatividade — “como pedir ajuda aos arrabaldes/ como fazer oferendas às rotundas/ seguir na ordem certa das fachadas?” (p. 42). Com o decurso dos versos, tudo se fortifica de novas implicações, níveis aventícios do sentido — “não ouças os apelos/ não despertes seus olhares// porque são apenas homens e demónios” (id.)

Uma poesia como a de Carlos Poças Falcão é, necessariamente, uma revisitação (lúcida e emancipada) de um vasto legado. Ao lermos estes versos: “Subir uma montanha é fincar-se ainda à terra/ ascender a altos cumes é ainda horizontal.” (p. 22), ou quando somos confrontados com ocorrências como “um desconhecer a pique” (p. 27), não é apenas da dualidade entre terreno e divino que se trata, mas de uma descodificação do que é idiomático, dentro dos códigos do texto bíblico, enquanto fonte cultural e literária. O conhecimento é ascensional, no sentido em que prefigura uma superação metafísica, ou um confronto superador entre a visceral incompletude humana e a totalidade infinita do transcendente — o temporal e o espiritual, se é adequado tal simplismo. Mas, além da poderosa imagem da montanha, esta poesia abeira-se, por exemplo, do sortilégio do Cântico dos Cânticos, para fazer uma releitura dinâmica daquele grande monumento lírico (e devocional). Este universo poético, altamente codificado, estatuído na sua gramática própria, é recalculado e refeito, na poesia de Carlos Poças Falcão, através de uma imagética subtil, profundamente sugestiva, e de hábeis apropriações, de timbre, mais do que sensual, insinuante, que colhem inspiração no texto bíblico para lhe dar nova vida e diferentes configurações — “percorre a minha pele/ é nela que lhe ofereço o coração// beija-me a sua boca é néctar/ olha-me o seu olhar protege-me” (p. 15). A memória e a reinterpretação da matriz bíblica opera poderosos efeitos na construção de sentidos vários e actuantes que estes poemas nunca deixam de ser. Uma sequência como: “o que é humano ao centro/ como um sacrifício vivo/ que não acha repouso” (p. 44) recorda-nos que o fardo — e a benesse? — do ser humano é, ao contrário dos restantes animais, não ter real quietude à sua disposição, nem verdadeiro abrigo com que possa contar. O que não pode deixar de ecoar as palavras de Mateus: “O Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça.” Trata-se, não de índices de erudição, mas da capacidade de transfigurar e transpor o que poderia fixar-se e petrificar, tornando-o, pelo contrário, uma parte da vida.

Esta poesia reflecte sem receios acerca da condição humana, sem obliterar a desumanidade que, a maior parte das vezes, a define — “Perseguições e mortes são o tédio a história/ mas para os céus clementes tudo flui.” (p. 13) Ao fazê-lo, não pretende coarctar as suas possibilidades como espécie, mas lançar as bases para um debate íntimo e quase silente, o que estes poemas levam a cabo. Uma tentativa de entender “a obrigação da liberdade” (p. 19) e o horizonte iniludível da adversidade — “o mal/ não está no escolher, mas na fractura de me ver” (p. 11) —, uma condição à qual o sujeito não foge. Ao poema, com a sua “voz pobre” (p. 37), mais não resta do que a humildade de assumir a “mais obscura idade” (p. 43) em que se forma e em que, também ele, deve “entrar no fogo/ e só arder” (p. 55). Mais não lhe cabe do que a oferenda de “palavras para um tempo de secura e esquecimento” (p. 37).

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