Português Suave: a operação de charme da indústria tabaqueira

Em Portugal, além das tímidas medidas legislativas para controlo do tabaco, assistem-se a convivências no mínimo caricatas com a indústria do tabaco.

Era por volta de 1560 e o senhor Jean Nicot, embaixador de Henrique II da França na corte portuguesa, estava encarregue de negociar o casamento de Margarida de Valois com o jovem Dom Sebastião. Quando, intrigado pelos efeitos que lhe tinham sido mostrados por Damião de Góis, enviou certas folhas de tabaco à rainha Catarina de Medicis, na esperança de lhe curar as famosas enxaquecas, não imaginava que despoletava assim uma das maiores epidemias da história. Estas folhas, moídas e inaladas, tornaram-no famoso entre a elite parisiense, rapidamente adicta, levaram Lineu a dar o seu nome ao género Nicotiana, e mais tarde à própria nicotina, princípio activo responsável pela disseminação mundial da dependência. Este nome tornou-se primeiro sinónimo de panaceia medicinal, depois de hábitos de elegância e elite, democratizou-se com o cachimbo, industrializou-se com a máquina de fazer cigarros de Bonsack e explodiu com as guerras mundiais.

Depois, o pesadelo: desde o primeiro relatório do Surgeon General (Smoking and Health: Report of the Advisory Committee of the Surgeon General of the Public Health Service, 1964) que se acumula a evidência, avassaladora, inatacável, arrepiante, de que o consumo do tabaco é o responsável directo por um sem número de doenças, com o cancro do pulmão, a doença cardiovascular e a doença pulmonar obstrutiva crónica à cabeça, causando a morte precoce a milhões de pessoas e, pior que isso, a perda de anos saudáveis, o sofrimento, o abandono do trabalho, o gigantesco consumo de recursos médicos, com um peso tremendo para as famílias, para os Estados e para o ambiente.

Este panorama sombrio tem mudado nas últimas décadas, precisamente porque têm sido dados importantes passos pelos governos e autoridades de saúde do Mundo para o controlo desta praga, minimização dos seus efeitos e protecção dos não fumadores. A legislação restritiva, os impostos elevados, a proibição da publicidade e da venda a menores, o controlo da contrafacção têm tido efeitos claros e mensuráveis no consumo, sobretudo no mundo ocidental. A Convenção-Quadro da OMS, o maior tratado internacional de Saúde Pública, ratificado já por 181 partes, prevê isso mesmo: controlar e, em última análise, acabar com a epidemia do tabaco. O objectivo de tornar residual o consumo de produtos de tabaco, irrealista há uma década, entrou já nas metas de vários países ate 2030.

Entretanto, a indústria produtora de tabaco não dorme. Perante a quebra do consumo e em risco de ver encolher os seus astronómicos lucros, reinventa-se e abre novas frentes. A estratégia não é nova e a utilização do marketing enganoso tem um século de vida. À medida que se tornavam públicos os grandes estudos que ligavam de forma indelével o tabaco a doença grave, a indústria lançava novos produtos, com filtros, slims, menos irritantes, com baixo teor de alcatrão, suaves, light. Todos se revelaram igualmente perigosos. Nos seus anúncios de fascínio, cowboys másculos, estrelas de cinema e até médicos e cientistas apregoavam as qualidades do produto, prometendo-o mais saboroso, mais prestigiado, mais seguro. A indústria namorava a ciência ou tentava desmontar os seus argumentos, manobrando o público e conseguindo obter o seu bem mais valioso: um consumidor dependente que, apesar da alta probabilidade de ter a sua vida abreviada, proporcionará décadas de lucro fiel. Provavelmente nenhum outro ramo da economia provoca a morte a metade dos seus consumidores, nem mesmo a indústria do armamento. E no entanto, esta morte é protelada e lenta e, por isso, compensadora.

Na era da tecnologia e dos gadgets atraentes, a indústria acena-nos agora com cigarros electrónicos e tabaco aquecido. Lustrosos, tecnológicos, espaciais, estes dispositivos têm ligações USB e LEDs, lembram smartphones de última geração, piscam o olho a uma geração de instagramers e youtubers que procura o bem-estar e que está na crista da onda, uma espécie de hedonismo high-tech que repudia os velhos cigarros mal-cheirosos. Ao tabaco aquecido chama-lhe heat-not-burn, como se os 350ºC de temperatura que atingem estes pequenos cigarros fossem inocuamente tépidos. A indústria vestiu-se da bata da ciência e quer agora parecer credível, preocupada, financiando duvidosas instituições como a “Fundação para um Mundo sem Fumo” (repare-se, sem fumo, mas não sem tabaco, que se pretende que por cá ande muitos anos mais, angariando clientes à mercê da poderosa nicotina). A indústria quer ser a campeã da Saúde Pública, a aliada dos médicos e a parceira das autoridades, protegendo agora os consumidores que, alega, não conseguem deixar de fumar e transferindo-os para produtos de “risco reduzido”. Contrata cientistas das grandes farmacêuticas, recorre à linguagem do marketing científico, assume-se perita em toxicologia e epidemiologia, ao mesmo tempo que promove (ilegalmente) os seus glamourosos produtos nas redes sociais e nos festivais de Verão.

O que sabe afinal a ciência sobre o “risco reduzido” destes produtos? E quando digo ciência refiro-me à investigação isenta produzida por cientistas credíveis, não à que a própria indústria divulga e publica. Que: 1) os cigarros electrónicos e tabaco aquecido não são isentos de compostos perigosos e de riscos para a saúde, alguns dos quais semelhantes aos do cigarro convencional; 2) que concentrações menores de alguns tóxicos não significam segurança ou menores riscos a longo prazo, que ainda não estão estudados; 3) que a experimentação destes produtos está em crescimento explosivo pela população jovem, provoca elevada dependência e serve de porta de entrada a outros consumos, como o cigarro; 4) que não têm nenhum efeito comprovado para ajudar a deixar de fumar.

Em Portugal, além das tímidas medidas legislativas para controlo do tabaco, assistem-se a convivências no mínimo caricatas com a indústria do tabaco: em Setembro deste ano, a Tabaqueira ganha um prémio da Associação Portuguesa de Ética Empresarial na área “Saúde de Qualidade” (leram bem, saúde!). Em Novembro, a prestigiada Fundação de Serralves promove um encontro sobre “A Ciência ao Serviço da Comunidade” em que participam o deputado e investigador Alexandre Quintanilha, Paulo Célio Alves, investigador do CIBIO-InBIO da Universidade do Porto, e Gizelle Baker, alto cargo da Philip Morris International, sob o mecenato da Tabaqueira. A estratégia de charme é subtil mas clara e visa a credibilização de uma indústria que continua a não ser capaz de assumir que só tem dois caminhos possíveis: ou encerra ou muda efectivamente de ramo, utilizando os seus gigantescos recursos em prol da humanidade, ao invés de lançar mais produtos baseados no uso recreativo da nicotina.

E que resta aos fumadores, vítimas de umas das mais poderosas substâncias psicoactivas utilizadas pelo Homem? Ao contrário do que se alega, há respostas eficazes com recurso a apoio médico especializado. E há sobretudo uma enorme estrada que se abre na prevenção: evitando novos consumidores, evitaremos novos dependentes e todo o rasto de doença, incapacidade e morte que se lhe seguem.

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