O Japão volta a ser recebido na Ajuda, mas desta vez sem D. Luís na sala do trono

As relações diplomáticas entre Portugal e o Japão voltam a ter o Palácio da Ajuda por cenário, 150 anos depois de a primeira delegação nipónica ali ter estado. Exposição condensa cinco séculos de uma história partilhada repleta de maravilhamento e tensão. Acaba a 27 de Março.

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Máscara de dragão que faz parte dos presentes japoneses que D. Luís I recebeu Cortesia: Palácio Nacional da Ajuda

Esta é uma história com 500 anos que se escreve em dois grandes capítulos, separados por um longo interregno. Esta é a história das relações entre Portugal e o Japão contada em versão condensada e numa exposição que reúne biombos, lacas, mapas, porcelanas, dicionários, armaduras e espadas de samurai.

Contando com empréstimos de várias instituições públicas e de coleccionadores privados, Uma História de Assombro. Portugal-Japão Séculos XVI-XX leva ao Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa, uma segunda embaixada nipónica, depois de por ali ter passado, há pouco mais de 150 anos, a primeira. O rei D. Luís, que se vira forçado a assumir o trono na sequência da morte prematura do irmão, D. Pedro V, tinha acabado de casar com uma princesa italiana, Maria Pia de Sabóia, quando recebeu na Sala do Trono os representantes do governo do Japão. Esta delegação estava a fazer um périplo pela Europa, passando pelos países com quem tinha reatado relações diplomáticas, no caso de Portugal interrompidas há mais de 200 anos. 

“É o momento da reabertura do Japão ao Ocidente, muito graças à intervenção dos Estados Unidos. E Portugal beneficia dessa conjuntura internacional, reatando laços que tinham sido quebrados de forma violenta com a expulsão dos missionários do território japonês, em 1614, e depois com a saída forçada de todos os portugueses, os comerciantes, no final da década de 1630”, diz Alexandra Curvelo, historiadora que divide o comissariado científico desta exposição com Ana Fernandes Pinto, ambas investigadoras da Universidade Nova. “Há registos na imprensa da época desta visita, da ida da delegação ao Teatro de São Carlos e da audiência régia, em pormenor.”

Na bagagem, lembra um dos textos do catálogo que acompanha esta exposição da Ajuda, escrito pela conservadora de mobiliário da casa, Maria José Tavares, os enviados nipónicos traziam muitos presentes para o jovem rei português, que nesse ano de 1862 honrava o Tratado de Paz, Amizade e Comércio que D. Pedro V celebrara com o Japão dois anos antes. Muitos estão agora à vista de todos na Ajuda e alguns deles, como a espectacular armadura e os arreios de cavalo, pela primeira vez. Espadas com trabalhos ornamentais, pinturas, biombos, tinteiros e ricas sedas foram oferecidos ao monarca por um importante governante já retirado, o taicum Tokugawai. Mais tarde, em 1864, D. Luís recebe do xogum Tokugawa, um poderoso chefe militar, uma nova remessa de prendas em que às espadas e têxteis nobres se juntam “uma escrivaninha, dois pares de jarras, uma poncheira e um vaso de porcelana, uma figura de cristal representando um homem, uma mesa de escrita e duas caixas de diversos jogos”, escreve Tavares.

Os presentes eram tantos e tão especiais que, nas obras de remodelação do palácio, na década seguinte, D. Luís manda fazer uma sala para os acomodar, um espaço que a exposição procura recriar e que, sendo no essencial japonês, mais tarde se passa a chamar, ironicamente, Salinha Chinesa.

Os "bárbaros do sul"

A este período de reencontro, que começa em 1860 e que na exposição se centra na dita salinha e nos presentes para o rei de Portugal, segue-se o da fase da diplomacia cultural que marca os últimos núcleos de Uma História de Assombro, abrangendo o período que vai de 1903 a 1952. Neles se pode ver — em documentos escritos e iconográficos — como os portugueses que visitaram o arquipélago e ali trabalharam olharam para esse “novo Japão” e para a sua importância crescente na geopolítica mundial. Neles se pode ver como os japoneses — académicos e coleccionadores — olharam para a memória histórica da presença portuguesa no seu território e a resgataram. É aqui que se pode encontrar um biombo nanban da primeira metade do século XIX filiado nos realizados nos séculos XVI e XVII em que se representa a chegada dos portugueses a um porto japonês. Nanban, explica-se no catálogo, porque são obras de arte que contêm representações de nanban-jin ou “bárbaros do sul”. Com a chegada dos portugueses no século XVI, a palavra de origem chinesa nanban, que no Japão começou a ser usada para designar os povos da Ásia do sudeste, passou a ser aplicada aos povos do sul da Europa (ingleses e holandeses tinham direito a outro termo — eram kómó-jin ou “homens de cabelo vermelho”).

“O que queremos mostrar com esta exposição é que a relação que se estabeleceu há quase 500 anos entre japoneses e portugueses, que começou por ser marcada pelo tal assombro, o maravilhamento, e por uma tensão crescente que depois termina naquilo a que o ocidente chamou martírio e na expulsão de missionários e comerciantes, nunca impediu que se estabelecesse um diálogo entre estas duas culturas que se influenciaram mutuamente, como podemos ver pela arte, pelos relatos de viajantes e missionários, e até pela cartografia”, explica Alexandra Curvelo.

Os atlas presentes na exposição — quer em suporte físico, quer em imagens projectadas em dois dos muitos ecrãs que fazem parte da estrutura de Uma História de Assombro — são um reflexo da forma como o encontro de portugueses e japoneses no século XVI produziu muito conhecimento. “Os portugueses foram um elo absolutamente decisivo para o mapeamento do território japonês. Só depois da chegada dos primeiros missionários e comerciantes é que começam a circular na Europa mapas mais completos do Japão.”

Sublinhando que a presença portuguesa no arquipélago desde a chegada da primeira nau (c. 1542-43) até à expulsão dos últimos comerciantes (1639) nunca é assegurada por fortes guarnições militares mas por missionários e homens de negócios, a comissária volta a falar de mapas para ilustrar o “diálogo proveitoso” entre as duas culturas: “Quando os portugueses chegam não está fixada uma cartografia do arquipélago, mas eles não partem do zero. Há uma série de tradições e de conhecimento local que lhes é útil, embora a cartografia japonesa fosse até ainda muito mística, muito ligada à espiritualidade budista.”

Padres e agentes de negócios

Fixando-se sobretudo na Ilha de Kyushu, a terceira maior do arquipélago japonês, “território de contacto de várias culturas”, os missionários portugueses — primeiro e em exclusivo os da Companhia de Jesus e, mais tarde, também os franciscanos — levam outra espiritualidade na bagagem. “O encontro com os japoneses no século XVI é o encontro do Japão com o ocidente, o encontro do Japão com o cristianismo, que depois passa a ser perseguido e que só deixa de ser proibido em 1873.”

Os jesuítas vão nas naus de mercadorias e são apresentados aos grandes senhores da guerra japoneses pelos comerciantes. Rapidamente, diz Curvelo, estes religiosos percebem que só aliando-se aos mercadores estarão em condições de assegurar a sobrevivência da missão. E fazem-no. “Esta aliança aos comerciantes levanta muitas questões éticas até em Roma, mas acaba por ser vista como um mal necessário. É por isso que a Igreja dá aos jesuítas grande margem de manobra para se envolverem no negócio.”

A Companhia de Jesus recebia uma percentagem da troca da seda chinesa pela prata japonesa e alguns dos seus padres assumiam posições estratégicas. “João Rodrigues, um jesuíta que foi para o Japão muito novo e rapidamente aprendeu a língua, estando entre os que contribuíram para o primeiro dicionário português-japonês e sendo autor de uma obra importante sobre a língua [Arte da Lingoa de Japam, 1604], era um dos agentes do comércio em Nagasáqui.”

Nagasáqui, aliás, é cedida à Companhia de Jesus e transforma-se num centro da cristandade, com igrejas em pedra de grande porte, passando em pouco tempo, também graças à presença chinesa, de modesta comunidade piscatória a cidade cosmopolita. “Nagasáqui é a cidade mais cosmopolita do Japão desde a chegada dos portugueses até que o comodoro Perry, da Marinha americana, entrou com os seus navios na baía de Tóquio, em meados do século XIX”, abrindo alguns portos do arquipélago ao comércio com os Estados Unidos.

“Os jesuítas tornaram-se tão importantes no território que acabaram por ser perseguidos, assim como qualquer franciscano ou japonês fiel ao cristianismo”, lembra Curvelo. Numa fase delicada da política no arquipélago, que correspondeu à primeira unificação do território, a Companhia de Jesus era vista como um possível contrapoder. “Os grandes senhores feudais começam a achar que a capacidade de mobilização dos jesuítas pode ser uma ameaça. E o próprio cristianismo é proibido porque é visto como potencialmente disruptivo, causador de tensões sociais que podem pôr em causa a unidade do Japão.”

Os missionários acabam expulsos e muitos são castigados publicamente. Alguns ganham até estatuto de mártires ao serem crucificados ou queimados na fogueira. “Estas execuções a que a Igreja no Ocidente chamou martírios eram vistas no Japão como punições públicas aplicáveis a vários tipos de crimes. Se formos ver, não são diferentes dos castigos impostos pela inquisição na Europa.”

Na exposição da Ajuda há várias reproduções digitais de gravuras e documentos que atestam essas punições públicas e objectos ligados aos castigos e aos mártires. Entre eles estão os relicários de dois dos primeiros 26 cristãos crucificados em Nagasáqui em 1597, ainda antes da ordem de expulsão (1614). Ainda assim, a comissária conclui: “A tensão, mais do que a violência, foi o que marcou a relação do Japão com o cristianismo, com os jesuítas e outros missionários.”

Cinco escolhas das comissárias

Biombo de duas folhas

Japão, século XVII-XVIII? Colecção Privada, Lisboa.

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Cortesia: Palácio Nacional da Ajuda/ Arquivo VERITAS Art Auctioneers

Biombo realizado no Japão muito provavelmente já após a expulsão dos Portugueses (1639), atestando a persistência desta nova temática pictórica na pintura japonesa e a curiosidade que este exótico continuou a exercer.

Par de estribos

Japão, final do século XVI/ início do século XVII. Colecção particular

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Cortesia: Palácio Nacional da Ajuda/José Luis Samagaio

Cada estribo apresenta uma cruz vazada, testemunhando a aliança de alguns grandes senhores japoneses com a missão cristã.

Núcleo de peças do Hirado City Ikituski Folk Museum: 

Virgem com o Menino e dois santos, Santo Inácio de Loyola e São Francisco Xavier

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Japão, c. 1926. Hirado City Ikitsuki Folk Museum. Shima-no-yakata, Japão

Deste núcleo da Virgem fazem parte objectos venerados por comunidades de cristãos ocultos (kakure kirishitan) e guardados em segredo por um dos seus elementos. De feição variada, incluem os omaburi, pequenas cruzes de papel que depois de tocadas por água purificada serviam de ligação com o sagrado, sendo guardadas em caixas de madeira (otenpensha). Outras peças têm por base a imagem de uma divindade com uma criança ao colo, remetendo para a iconografia da Virgem com o Menino, que se aproxima também de Kannon, bodhisattva budista associada à compaixão.

Carta redigida por Tokugawa Iemochi ao rei de Portugal

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Cortesia: Palácio Nacional da Ajuda/ Maria Pedro Fonseca AHD/MNE

Japão, 1862. Arquivo Histórico Diplomático – Ministério dos Negócios Estrangeiros

Documento que remete para o reatar das relações diplomáticas entre Portugal e o Japão já no contexto do período de abertura do Japão ao estrangeiro, datada de dois anos após a assinatura do Tratado de Paz, Amizade e Comércio entre os dois países. Em 1862 chegou a Portugal a Embaixada japonesa que foi recebida pelo rei D. Luís I.

Armadura japonesa de Samurai

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Cortesia: Palácio Nacional da Ajuda/ Maria Pedro Fonseca AHD/MNE

Japão, séc. XVIII – XIX (primeira metade). Palácio Nacional da Ajuda

Com a Embaixada japonesa de 1862, chegaram à Corte portuguesa vários presentes cuja memória material perdura na dita Sala Chinesa do Palácio da Ajuda. De entre os vários presentes, destaca-se o conjunto de arreio e uma sela de cavalo de elevado valor artístico, assinado por um mestre em selas ao serviço do terceiro xogum, Tokugawa Iemitsu (r.1623-1651).

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