Ser escultor de areia ou a dura lição da obra efémera

Há 13 anos que Pedro Mira corre o mundo para criar grandes esculturas em areia ou em gelo, das quais não guarda mais do que memórias e algumas fotografias. A efemeridade das matérias-primas com que trabalha tornou-se uma lição para a vida.

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Nuno Ferreira Monteiro

À esquerda, a figura de José parece olhar enternecidamente para o Menino Jesus, enrolado numa manta fofa entre os braços de Maria. Tocam-se os rostos de mãe e filho, ambos de olhos fechados e sorriso beato, em frente a um cenário azul. De joelhos no chão, Pedro Mira vai agora moldando as vestes da Sagrada Família. A traços de espátula, o bloco de areia ganha pregas e jeitos de tecido. Há ferramentas um pouco por todo o lado: pás, colheres de pedreiro de todos os tamanhos, desempenadeiras, pincéis, cinzéis e instrumentos miúdos numa caixa de plástico. Uma das regras da escultura em areia é começar sempre de cima para baixo – e o pequeno presépio de Rio Maior estava quase terminado quando nos sentámos à conversa.

Há 13 anos que Pedro Mira transforma blocos compactos de areia em edifícios e personagens delicadas. Monstros, figuras históricas, bailarinas, castelos. Aos 48 anos, soma mais de 100 projectos no portefólio, realizados em 23 países diferentes, quase sempre no estilo naturalista que o caracteriza. “É uma profissão muito particular, não me deixa estar em casa sossegado”, desabafa, entre sorrisos. O ano é passado a viajar pelo mundo, de festival em festival. Já percorreu a “Europa toda”, esteve no Canadá, na Índia, na Austrália, em Taiwan, no Kuwait, na China. Sempre que possível, aproveita para ficar mais tempo em cada lugar, para conhecer o país e fazer surf. “Isso, sim, uma paixão.” Tão grande que está prestes a trocar Vila Alva, pequena aldeia no interior do Alentejo, onde vive há 20 anos, por uma casa junto às ondas de Vila Nova de Santo André.

A areia, no entanto, entra no currículo de Pedro Mira “um pouco por acaso”. Os castelos e a única sereia moldados por brincadeira na praia não chegam para fazer desta uma “história romântica”. É antes sobre sobrevivência num país onde os artistas plásticos “têm sempre dificuldade em arranjar profissão”, assume. Tinha sido professor, fotógrafo, assistente de escultores e de artistas plásticos conceituados. Teve uma pequena oficina de joalharia e de artesanato durante muitos anos em Vila Alva. Trabalhou prata, ouro, silicones, resinas, madeira. “Sempre à procura de novos trabalhos e sempre com dificuldade em encontrá-los”, confessa. Foi assim que chegou ao Festival Internacional de Escultura em Areia (FIESA), no Algarve, em 2006: por mero acaso, como ajudante, mais um trabalho para experimentar e pagar contas. Mas como tinha experiência como escultor e as técnicas não eram assim tão diferentes, rapidamente o meteram a moldar figuras douradas. E de uma personagem da Última Ceia, réplica do famoso quadro de Leonardo da Vinci, Pedro acabou por fazer outras cinco e sair com um contrato para um novo projecto na Turquia e depois outro na China. Tinha encontrado um nicho de mercado.

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Nuno Ferreira Monteiro

“É um trabalho altamente profissional”, define. “Temos de trabalhar com prazos muito limitados, objectivos bem definidos e aceitar aquilo que nos propõem, sem dar muita importância ao ego artístico.” Normalmente, os convites para participar em festivais e competições vêm já com tema definido, escolhido pela organização de acordo com as características de cada escultor. No Japão, por exemplo, escolheram-no para trabalhar a influência dos portugueses no país e acabou por criar, sem opção de escolha, o retrato de São Francisco Xavier, missionário que “levou o Cristianismo para o Japão”, e a composição de “um grupo de portugueses a entregar armas de fogo aos japoneses”. “Portanto, duas coisas que eu preferia que não tivéssemos levado para lá”, atira.

É sem lamento que desmistifica o trabalho real de um escultor de areia profissional como “muito técnico” e “pouco artístico”, embora exista sempre “uma parte pessoal” que transparece em cada escultura. “Pomos a nossa linguagem, o nosso método de trabalhar e isso vê-se.” Garante que, muitas vezes, basta uma fotografia para conseguir identificar o trabalho de outro escultor – “profissionais, somos uns 50 em todo o mundo”. E as esculturas de Pedro, o que as distingue? Ri-se. “Não é fácil identificarmos as nossas próprias características, mas os colegas dizem que faço um trabalho muito clean, muito definido, limpinho”. Algo que, confessa entre risos, não gosta e "quer evitar”.

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É esse o maior desafio da areia: “Nunca ficar 100% satisfeito com o resultado”. “Para conseguirmos alguma qualidade temos de ser exigentes connosco próprios e depois a exigência chega a um ponto em que dificilmente atingimos aquilo que queremos.” Aprender a viver com isso foi a outra “lição de vida” que a areia lhe trouxe. Não se importar tanto com o resultado final, mas aproveitar o processo para lá chegar. “Na maior parte das vezes, estamos entre cinco a 20 dias seguidos a trabalhar intensamente numa escultura, às vezes a sonhar com o trabalho, e no momento em que acaba, tiramos umas fotografias, apanhamos um avião e nunca mais as vemos”, relata. “Passados umas semanas ou meses, ela é destruída e o trabalho fica aí.”

É uma “arte efémera” e a lição “dura”. Daquelas “difíceis” de roer no princípio, confessa. Mas, hoje, é precisamente com materiais efémeros que mais costuma trabalhar – a areia, sobretudo, e o gelo. “Apesar de serem diametralmente opostos, até porque a areia é modelável e o gelo só esculpível – uma vez retirado, já não se consegue acrescentar, só ‘colando’ –, o tipo de eventos são muito semelhantes e requerem o mesmo tipo de profissionais, por isso acabamos por fazer todos parte do mesmo grupo.”

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E a efemeridade da matéria-prima, que começou por ser apenas coincidência, é hoje uma coisa que o atrai muito. “O mundo já está tão cheio de coisas que eu não quero fazer mais”, resume. “Antigamente, nos intervalos das esculturas em areia, ia para o meu atelier trabalhar noutros materiais mais permanentes. Se calhar vendia um de vez em quando, mas comecei a acumular trabalhos que não serviam para nada. A ideia não me satisfazia minimamente.” Hoje, acha piada ao facto de as esculturas que faz “não ficarem neste mundo.” Ficam as fotografias e a experiência de quem a fez e de que quem a viu. Tudo se transforma, nada se perde.

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