A França como laboratório político

Os “coletes amarelos” são de alguma forma um alerta lembrando que a integração europeia não pode ser feita à custa da soberania nacional.

Vivi em Paris entre 1967 e 1974. Foi sem dúvida uma das épocas mais felizes da minha vida, durante a qual aprendi a amar o país e sobretudo a sua capital, que até hoje considero uma das mais belas cidades que conheço. Em Maio de 1968, a insurreição estudantil chegou à Sorbonne, onde eu estudava, e de imediato identifiquei-me com ela sem pensar duas vezes: era também a “minha” revolução, vivi-a intensamente na rua e dela guardo até hoje uma memória intensa e feliz.

Hoje, 50 anos depois, há quem pretenda comparar o “Maio de 68” com a revolta dos “coletes amarelos”. Mas na verdade só se assemelham no que é acessório: na dimensão das manifestações e do seu alastramento a diversas camadas sociais, em alguma violência por parte de franjas extremistas de manifestantes (bastante maior hoje) e pouco mais. Tudo o que é essencial separa os dois movimentos. Em primeiro lugar, o contexto económico, social e político. Contrariamente aos dias de hoje, vivia-se na época um período de prosperidade e de desenvolvimento económico, assim como do seu corolário, o consumismo. O Estado social era uma realidade, havia trabalho e acesso à habitação, o futuro não parecia ameaçado e na verdade nem se pensava muito nele, vivia-se o presente. Pelo menos do ponto de vista dos estudantes de quem partiu o movimento.

Essa é outra grande diferença relativamente aos dias de hoje. Quem iniciou o movimento dos “coletes amarelos” são os esquecidos da globalização (que não existia à época), as classes média e média baixa que vêem descer progressivamente o seu poder compra e o seu estatuto social, cujo dia-a-dia é cada vez mais difícil e mais precário. Gente sobrecarregada de impostos e cada vez com maior dificuldade em adquirir ou alugar uma casa ou educar convenientemente os seus filhos, ao mesmo tempo que assiste à concentração de enormes fortunas nas mãos de uns poucos. Aliás, nada de novo para grande parte dos países europeus.

Assim, são diametralmente diferentes, senão mesmo opostos, os motivos que geraram as duas revoltas. Maio 68 foi uma revolução cultural e antiautoritária que partiu de jovens sem os problemas acima mencionados, cujo combate se orientava em grande parte contra o conservadorismo dos valores sociais, familiares e sexuais. Uma revolução que tinha como alvo o consumismo asfixiante de uma sociedade a viver um boom económico. Não é por acaso que um dos livros mentores do movimento era Les Choses (As Coisas) de George Perec. Escrito em 1965, relata a vida quotidiana de um jovem casal da classe média para o qual a ideia de felicidade está relacionada com “as coisas” que almejam e de cujo consumo insaciável se tornam irremediavelmente prisioneiros. Mas as diferenças não se ficam por aqui. Em 1968, o poder político com o General de Gaulle era forte. Basta lembrar o seu discurso à nação de 30 de Maio que opera uma reviravolta no movimento. Hoje o poder político é fraco. É fraco em França com Emmanuel Macron e na maioria dos países europeus, em parte devido à sua dependência do poder económico, em parte devido a uma perda de autonomia no quadro da União Europeia. Não é pois por acaso que se assiste ao crescimento da força mobilizadora das redes sociais pondo em causa a democracia representativa, cada vez mais desacreditada.

A União Europeia foi uma criação inédita, fundamental para a paz e também para a prosperidade do continente europeu. Nunca será demais valorizar o alargamento da influência política e económica da Europa, ou os benefícios da livre circulação de pessoas, bens e serviços no seio do espaço europeu, graças à integração europeia. Mas hoje, acompanhando a perda progressiva do poder de compra, as populações insurgem-se contra uma organização que vêem como opaca, longínqua, sobre a qual não sentem ter a menor influência, mas que decide frequentemente do seu destino colectivo. Um poder abstracto mas omnipresente que com a colaboração dos políticos nacionais se tornou progressivamente no bode expiatório de tudo o que corre mal. Em minha opinião, a França funciona neste caso (e não só) como uma espécie de laboratório político — pelo menos para o Ocidente europeu — e os “coletes amarelos” são de alguma forma um alerta, lembrando que a integração europeia não pode ser feita à custa da soberania nacional. Vêm lembrar mais uma vez que o Estado-nação não pertence ao passado e que a cultura no sentido mais lato de identidade é algo indispensável à coesão social de uma nação.

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