O fotógrafo que captou “instantes únicos” nos Açores, o topo de montanhas submersas

António Luís Campos é um apaixonado pelo arquipélago "há muitos anos". Crónicas da Atlântida é um mapa fotográfico das suas viagens entre as nove ilhas e do quotidiano das suas gentes.

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Borbo: Aphantopus hyperantus. António Luís Campos fotografou a borboleta pela primeira vez em Portugal. Fez “duas fotos boas” em slide e enviou uma para a National Geographic, que a publicou em 2003 em dupla página. “A minha entrada no mundo profissional da fotografia foi através das borboletas”, recorda, sorrindo, o fotógrafo da National Geographic que acaba de lançar Crónicas da Atlântida alguns livros depois — muitas aventuras depois — de Metamorfose: Um Livro sobre as borboletas do Rio Mondego.

A Fugas conheceu o fotojornalista na galeria fotográfica Manifesto (da qual é curador) com um livro impresso de fresco na mão, um mapa fotográfico das suas viagens entre as nove ilhas dos Açores e do quotidiano das suas gentes, um livro “essencialmente” de fotografia (com legendas objectivas, pequenas histórias e uma introdução a cada ilha que é quase uma entrada de um diário) com textos seus que revelam a sua experiência num território a que está emocionalmente ligado. Assistir à apresentação de Crónicas da Atlântida (um elegante objecto financiado pela Bolsa de Exploração Nomad) é como abrir o livro e de lá deixar sair um pop-up de vidas reais, desconstruir mitos (o nosso preferido: que é possível atravessar de uma ilha para outra na baixa-mar), absorver sotaques mais ou menos cerrados, mergulhar em comezainas, conhecer as vacas pelos nomes e pessoas que já lançaram arpões. “Quem fica, fica muito tempo”, resumirá depois António Luís Campos, “apaixonado pelos Açores desde sempre”, à conversa numa esplanada de praia em Matosinhos. Com os Açores como cenário, o fotógrafo conhece “muitas fotografias sobre a natureza”, mas “muito pouca coisa sobre as pessoas”. Por isso quis “fazer um retrato da vida quotidiana, o que se encontra quando se chega lá”. “O projecto não pretende ser exaustivo, não quer ser enciclopédico. Quer mostrar o que naquela janela de tempo, e num cenário tão bonito, um viajante pode encontrar.” Essa é a génese de um projecto que nasceu mais ou menos em 2013, ano em que também começou a liderar uma viagem pelas ilhas da Atlântida.

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António Luís Campos

Área, número de habitantes e altitude. “Homem de mapas e geografias”, António estruturou a sua jornada orientado pelos pontos cardeais: de Leste para Oeste, da maior para a mais pequena, mostrando os seus Açores, uma perspectiva que sabe “subjectiva” e “moldada pelas relações” que ao longo das décadas foi entretecendo. “Uma visão sem filtros prévios, ainda que consciente das especificidades de cada ilha: do lavrador ao professor, do jovem ao idoso, do nativo ao estrangeiro, do baleeiro ao criativo, do turista ao padre, parando à porta de quem dedicou um pouco do seu tempo à minha objectiva e caneta, de ouvido à escuta e olhar atento, grato desde logo pela sua generosidade!”

Fala, e nem podia deixar de ser de outra forma, de “homens duros, curtidos, afáveis apesar da resistência ao primeiro contacto”, e de uma “ligação muito crua” à terra e aos animais, do equilíbrio de forças entre o culto do Divino Espírito Santo, enraizado em todas as ilhas açorianas, e o ritual pagão que se segue às coroações. Sem lhe dar protagonismo, fotografa a “desertificação humana”, a dependência dos Açores do exterior — a famosa insularidade —, os barcos que substituem os autocarros, as regatas de barcos baleeiros ("desta vez sem dor nem sangue"), o whale watching e uma geração que está a aproveitar os recursos naturais em locais improváveis. Folheiam-se as Crónicas da Atlântida para encontrarmos a tourada à corda, a vinha ("que é um grande projecto"), as festas que parecem sair debaixo das pedras e as filarmónicas com “pessoas dos 70 aos 15 anos” e “coisas insólitas” — “que só são insólitas para nós, viajantes” — como as pessoas que criam codornizes debaixo da cama.

“É uma riqueza. Há sempre algo a acontecer”, exclama António Luís Campos. Esta pode ser uma das verdades absolutas sobre a sua Atlântida. “Não é um local de alta intensidade, não há stress e não andas a correr de um lado para o outro, mas há uma vivência muito próxima das pessoas. Enquanto nas grandes cidades podemos passar uma rotina quase sozinhos, ali não. É quase impossível estares abandonado. É quase impossível ir e não ser convidado para uma festa. Paradoxalmente, o facto de aquilo ser pequeno e de ter pouca gente, faz com que as pessoas estejam mais próximas, que sejas convidado para ir para aqui ou para acolá. Se te puseres a jeito não paras”, explica o fotógrafo que se pôs muito a jeito e que hoje admite entender “um certo romantismo da vida rural”.

“Na Terceira, quando estive no Espírito Santo, devo ter comido sozinho uma vez ou duas. Entre almoços e lanches, entre a reza e a missa e uns comes, e umas festas, andámos constantemente a rolar. Aquilo é constante. Entre andar na natureza ou estar em contacto com as pessoas é mais ou menos permanente. E pessoas que são muito abertas. Há pessoas que vivem mais em ilha nas grandes cidades do que nos Açores. No Porto ou em Lisboa quando muito tens o fim-de-semana para arejar e isso se não quiseres ficar em casa para descansar.”

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António Luís Campos

Desta vez, António, que em 2014 deu por si numa jornada de mil quilómetros pelas águas do rio Beni (Bolívia) com mais três exploradores, quis sentir os Açores na pele. E quis deixar alguma pele no livro ("faça chuva, faça lua”, como escreveu para descrever a saída ao mar do mestre Eugénio, “olhar ora brilhante, ora esgotado”, e a luta entre homem e natureza, “um jogo arriscado no qual nem sempre o resultado é feliz"), retratando as excepções que fazem sobressair ainda mais a regra. E a regra, com tanto de fatídica como de romântica, parece ser que “nos Açores não há uma solução fácil”, explica António, que reservou a página 115 do seu livro para Gaia, filha mais nova de Camille Farge nascida de um parto natural em casa, “uma opção arrojada numa ilha [Flores] em que a maternidade mais próxima está a centenas de quilómetros e só se alcançaria em tempo útil, voando”. “Devido à inexistência de unidades hospitalares nas ilhas mais pequenas, há anos que as mulheres grávidas são obrigadas a viajar com semanas de antecedência, para longe do seu ambiente familiar.”

“Os Açores”, escreve o fotógrafo, “são o topo de montanhas submersas”. “Partilhando pilares culturais comuns que a geografia, o clima e a história moldaram, cada ilha apresenta a sua identidade própria. Procurou captar “instantes únicos que não se voltarão a repetir — que fossem testemunhos da vivência insular com a vi”.

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