Torne-se perito

Espírito Santo O Divino sai à rua - e as melhores roupas também

Cozem-se pães durante dois dias, matam-se vacas para oferecer almoço a 400 pessoas
- e ao sétimo dia as coroas desfilam. Pelo meio, durante uma semana inteira, recebem-se
os vizinhos em casa para rezar o terço e venera-se o Espírito Santo. O domingo de bodo
é um acontecimento na ilha Terceira. Por Sandra Silva Costa (texto) e Daniel Rocha (fotos)

a Vai-se ao domingo de bodo como quem vai a um casamento - e isto já explica muita coisa.Vestidos compridos, com tules e afins; écharpes pelos ombros; cabelos entregues às mãos de profissionais; altíssimos saltos agulha, alguns ainda a cheirar a novo - vê-se mesmo que aquelas sandálias nos pés da rapariga aloirada que não larga a mão do namorado por nada deste mundo são a estrear.
Isto são elas. Eles põem fato e gravata e um ar circunspecto quando o cortejo está a sair da igreja e não se fala mais nisso.
Daqui a nada, hão-de entrar, impecáveis nas roupas de festa, na sede da Filarmónica de Vila Nova, onde os esperam várias fileiras de mesas que, contas por alto, terão uns 400 lugares. A meio da tarde, talvez as écharpes e as gravatas já não resistam às sopas e às alcatras de carne - mas isso não podemos jurar, já não estávamos lá para ver.
O que vimos foi isto: uma Vila Nova em peso (2000 habitantes que vivem da pecuária ou à conta do trabalho na Base das Lajes - sim, é verdade, ainda não tínhamos dito, mas estamos nos Açores, ilha Terceira) a celebrar um dos dias mais altos do seu calendário. Foi no domingo passado, o primeiro de bodo. Hoje é o segundo - e é certo que a história se vai repetir.
Qual história, por falar nisso?
"O que é o domingo de bodo?" Francisco, 73 anos, não tem mãos a medir, chamam-no de todo o lado porque há perto de 2500 pães para distribuir e nesse caso resume a coisa ao máximo: "É a festa do Espírito Santo". É uma ajuda, mas ainda temos muito bodo pela frente.
Já sabíamos que os açorianos são devotos ao Divino Espírito Santo, mas, confessamos, não sabíamos que o culto era tão complexo. Estamos na Terceira, mas poderíamos estar noutra ilha qualquer - há os domingos de bodo nas nove. E estamos em Vila Nova, concelho de Praia da Vitória, mas poderíamos estar noutro ponto qualquer da Terceira: só estamos aqui porque Rui Costa, da Delegação de Turismo da Ilha Terceira, nos disse que esta é uma das freguesias onde a tradição ainda é (mesmo) o que era.
As coroações
São 12h15 e Vila Nova inteira caminha em direcção à Praça - chama-se mesmo assim, só Praça. A uns 100 metros, já vemos uma série de carros de bois (33, contamos depois) alinhados de cada lado da rua. Têm montada por cima uma estrutura de vime e estão cobertos pelas melhores colchas brancas que há em casa de cada família. De um dos lados, atrás da fila de carros de bois, está uma pequena capelinha branca debruada a cor-de-rosa. É um Império do Espírito Santo e foi construído em 1894.
Nos Açores, explica Rui Costa, o culto ao Divino gira em torno dos impérios - e só na Terceira são mais de 60, aos quais correspondem outras tantas irmandades. São elas que gerem as coroações do Espírito Santo ao longo de oito domingos posteriores à Páscoa - e é aqui que a coisa começa a complicar-se para o nosso lado.
Voltemos a Vila Nova, ao vivo é mais fácil. Agora que os foguetes já estouraram no ar, o cortejo está em marcha. À frente, as crianças; os escuteiros depois - e entretanto seis adultos com coroas de prata decoradas com flores brancas à cabeça (olhamos para elas e ficamos impressionados: são minúsculas, feitas de tecido, e imaginamos o trabalho que têm as "duas ou três mulheres" de Vila Nova que as fazem). Fábio Vieira, 21 anos, trabalhador da construção civil, vai em lugar de destaque na procissão, equilibrando uma destas coroas. Saberemos depois que foi ele quem fez a promessa - mas foi o pai que abriu os cordões à bolsa para oferecer o almoço.
Explica outra vez Rui Costa, espécie de intérprete do P2 nesta incursão ao domingo de bodo: "Regra geral, as coroações devem-se a promessas que as pessoas fazem, normalmente por motivos de saúde. São oito domingos em que há coroações, sendo que os dois últimos domingos são os do bodo, que se distinguem dos outros porque a irmandade responsável pelo império em causa oferece pão a toda a comunidade". Lembram-se dos 2500 pães que Francisco tinha para distribuir?
A semana que antecede as coroações é simultaneamente de festa e de uma carga de trabalhos imensa para as famílias. Durante sete dias, quem faz as promessas recebe em casa o Espírito Santo, simbolizado pelas coroas, e constrói dentro de portas altares domésticos. Lá fora, uma bandeira com fundo grená assinala que aquela família "está a receber o Divino", prossegue Rui Costa. Para onde quer que se vá na ilha, desde a capital Angra do Heroísmo até às freguesias mais isoladas, lá estão elas, as bandeiras do Espírito Santo, a ondular ao vento. São grenás, já dissemos, e têm bordadas a coroa e uma pomba branca. Ninguém nos disse, mas percebemos que ter uma daquelas bandeiras içada à entrada de casa é um motivo de orgulho para os da Terceira - e para os açorianos em geral.
Continuando: é suposto que as famílias que estão a receber o Espírito Santo rezem o terço todos os dias. E é aqui que entra também a parte do trabalho. Manda a tradição que os vizinhos e amigos sejam convidados para a oração, que decorre normalmente à noite. E mandam as regras do bem receber que, quando há convidados em casa, haja uma mesa à espera. Já tínhamos dito que, neste caso de Vila Nova, Fábio fez a promessa e o pai abriu os cordões à bolsa, certo?
"O meu filho teve uma doença, melhorou e fez a promessa, mas como ainda vive comigo, sou eu que convido", conta Armando Luís Vieira no momento em que a sede da filarmónica começa a encher-se com os cerca de 400 convidados. "E a semana que passou foi de grande trabalho: muitas noites sem dormir, todos os dias a casa sempre cheia, muita coisa na cabeça, sempre a servir refeições... Mas felizmente correu tudo bem."
Mais trabalho: as raízes do culto ao Espírito Santo indicam também que as famílias sacrifiquem animais - "normalmente uma vaca para oferecer aos pobres e outra, ou outras, para oferecer o almoço aos convidados no dia da coroação", esclarece Rui Costa.
Em Vila Nova, portanto, convida Armando Vieira. Que, por ser pedreiro, não cria animais. Nada que a solidariedade não resolva: é prática comum que alguém crie as vacas que hão-de ser sacrificadas. Muitas vezes apenas a troco de "um naco de carne", sublinha Rui Costa. A promessa de Fábio custou duas vacas ("mas foram oferecidas ao meu filho e criaram-nas para isto"), mais "2000 e tal euros" a Armando Vieira. O almoço de domingo é feito à base da carne da vaca, mas há todos os extras - e a comida que foi preciso oferecer a quem foi rezar à casa da família, na Canada das Serretas. "Fica caro, é verdade, mas de repente aparece um problema e nunca se sabe o que pode acontecer. Espero não vir a precisar de fazer mais promessas, mas se tiver de ser...", diz Armando. Fábio está à entrada da sede da filarmónica e sorri para o lado. Tudo está bem quando acaba bem.
A distribuição do pão
Agora que a procissão acabou, o padre da freguesia dirige-se para o império - o feno verdinho espalhado pelo chão dá-lhe um agradável aroma campestre. A coroa do Espírito Santo repousa no altar. Do outro lado da rua está a despensa do império, onde a azáfama é mais que muita. Dentro dos armários que se alongam do chão ao tecto, acumulam-se os pães que foram cozidos desde a noite de sexta-feira e que o pároco já benzeu. "2500, mais coisa, menos coisa", informa Rui Costa, que foi perguntar a quem sabe. Os homens da freguesia sobem a escada encostada aos armários e vão-nos dispondo dentro de cestos de vime. Outros homens hão-de distribuí-los a quem quer que passe na rua - e há quem já saia de casa prevenido, com sacos de plástico nas mãos. Amanhã, os pães que sobrarem serão distribuídos porta a porta pelos elementos da irmandade, juntamente com um litro de vinho de cheiro (feito a partir da casta americana Isabelle). Será também amanhã que o criador das vacas para o domingo de bodo receberá a sua posta de carne.
Mas isso é só amanhã. Agora são mesmo horas de comer. Quem não foi convidado para o almoço de Armando recolhe a casa - ou nem por isso. Os carros de bois que continuam perfilados na Praça são agora espécies de cantinas familiares. Rui já nos tinha falado desta parte da tradição: nos domingos de bodo, os carros de bois saem à rua, enfeitados e recheados de comida. "As pessoas vêm, comem e passam o dia em convívio com a comunidade."
Agora que o sol da hora de almoço queima um nadinha, Maria Jorgelina Valadão e a família procuram refúgio debaixo da colcha branca que escolheram para trazer para a Praça. "É uma tradição que cumprimos há 37 anos", adianta Jorgelina, 59 anos, enquanto nos estende uma caixa de plástico cheia de favas coadas (são óptimas), obrigatórias em cada domingo de bodo. "Vimos sempre, sempre para cá. Trazemos os nossos comeres, tremoços, as favas [mas há muito mais, da carne assada aos pastéis de bacalhau, e até uma bela tarte] e convidamos os nossos amigos. Ficamos cá até à noite, em convívio."
O carro de bois de Jorgelina era dos avós do marido (ele toca na filarmónica, não está a almoçar com a família, mas há-de juntar-se-lhes mais tarde) e não houve domingo de bodo que não tenha sido estacionado na Praça. Este ano, por exemplo, com vários dias de antecedência. "O carro já cá estava desde o início da semana, para apanhar um bom lugar. A sebe veio hoje às sete da manhã. Logo à noite levamo-la para casa, mas o carro fica para o próximo domingo, que também é bodo", desenrola Jorgelina. A filha, o genro e a neta vão acenando com a cabeça e a vizinha que veio com eles diz que todos têm "muita devoção ao Espírito Santo". Nos carros em volta, trocam-se petiscos e copos de vinho.
As camadas do bolo
Saímos de Vila Nova por volta das 15h00 e ao longo da tarde haveremos de nos cruzar com outras celebrações do domingo de bodo. Passamos pelo Império de Porto Judeu (1933, fundo branco e várias cores a alegrá-lo), depois pelo de São Sebastião (1918), famoso pelas pinturas exteriores feitas por um padre a partir da década de 1960. São 18h52, olhámos agora para o relógio, e ali ao lado ainda se come. A mesa foi posta mesmo na Praça de São Sebastião e há ainda umas 30 pessoas sentadas à volta dela, a ouvir a filarmónica local. "O bodo é um convívio comunitário de toda a ilha", reforça Rui Costa.
De todo o arquipélago, nota, por seu lado, Maria Antonieta Costa, que na década de 1990 fez, no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Lisboa, uma tese de doutoramento sobre o culto do Espírito Santo no arquipélago. Em conversa telefónica, confirma que este culto "ocupa grande parte dos comportamentos e pensamentos das pessoas dos Açores".
Baseando-se nos vários estudos que foi fazendo ao longo dos anos, Maria Antonieta ajuda-nos a dissecar os traços de festa comunitária que já havíamos descortinado no culto ao Espírito Santo. "No contexto da Igreja Católica, grande parte destas actividades é vista como paganismo. Analisando em separado muitos dos rituais, que são diferentes na forma mas estão em todas as ilhas, vejo este culto como uma espécie de bolo com muitas camadas contendo nos seus fundamentos aspectos muito arcaicos que eram formas de religiosidade anteriores à cristã", introduz a investigadora, natural da Terceira.
A primeira camada: "Esta quase obsessão de oferta de pão, carne e vinho é disso exemplo e pode radicar-se em actos arcaicos com as divindades para a dádiva de primícias, sob pena de as populações poderem depois sofrer castigos", exemplifica.
Apesar de a colonização dos Açores só ter começado no século XV, o culto ao Espírito Santo está relacionado com a doutrina de Joaquim de Fiore, um abade cisterciense nascido em Itália em 1132, que, localiza a investigadora, "fez uma outra interpretação das Sagradas Escrituras". O primeiro império dos Açores data de 1670 e a manutenção, ainda hoje, de tradições como o abate de animais revela que o culto "tem um fundo judaico muito forte". "É o cumprimento de prescrições que aparecem na Bíblia, tais como a morte de bezerros", junta Antonieta Costa - e esta é mais uma camada do bolo. Mais tarde, os franciscanos imprimiram ao culto o cunho da solidariedade - e definitivamente o lado religioso e comunitário deram as mãos. "As irmandades obedecem agora aos valores da solidariedade, da fraternidade e da caridade", realça a investigadora.
E chegamos ao topo do bolo: "A organização das irmandades é um exemplar valiosíssimo de uma forma de democracia que tem funcionado em pleno", entende Antonieta Costa, que, entre 2000 e 2003, coordenou a candidatura dos impérios dos Açores a património cultural imaterial da UNESCO. O projecto haveria de ser rejeitado, com base no facto de o culto não estar em risco de se perder.
Pela parte que lhes toca, os açorianos não vão deixar morrer a tradição. Mesmo que estejam a milhares de quilómetros de distância. "O culto é observado com bastante devoção nas comunidades emigrantes açorianas", nota Maria Antonieta. E Rui Costa lembra que alguns emigrantes fazem questão de voltar às ilhas nos dois domingos de bodo - os dois únicos dias do ano em que as pequenas capelinhas coloridas abrem as portas.
Hoje, faça chuva ou faça sol, voltarão a abri-las. "Se Nosso Senhor quiser", Jorgelina e a família estarão de novo na Praça de Vila Nova. Eles, o carro de bois, as favas coadas e as melhores roupas do armário. "Claro que nos arranjamos um bocadinho melhor neste dia, é respeito", sorri Jorgelina.
Vai-se ao domingo de bodo como quem vai a um casamento - e agora está tudo explicado.

A jornalista viajou a convite da Epicentro-Festival da Actividade e da Associação Regional de Turismo

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