Paróquia de Góis despeja inquilinos do Chiado

Pároco diz que os três arrendatários usam as casas para alojamento local ilegal, enquanto os visados acusam a igreja de falta de sensibilidade social.

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O pátio que até à semana passada foi de Filipa Andrade Nuno Ferreira Monteiro

No pátio da casa onde Filipa Andrade morou nos últimos anos há uma grande laranjeira, carregadinha de frutas pequenas e ainda verdes, que se debruça para lá do muro, onde fica o barulhento recreio de uma escola. Nas quase duas décadas que Filipa aqui viveu, apanhar laranjas directamente da árvore foi um pequeno luxo campestre, bónus inesperado num apartamento do Chiado.

Aquele primeiro andar do nº 44 da Rua da Horta Seca, em Lisboa, esvaziou-se na semana passada e Filipa Andrade entregou as chaves a 30 de Novembro. O senhorio é a Fábrica da Igreja Paroquial do Colmeal, em Góis, distrito de Coimbra, que recentemente informou Filipa e outros dois inquilinos de que os seus contratos de arrendamento não seriam renovados.

No dia em que recebeu o PÚBLICO em casa, poucos dias antes do fim de Novembro, Filipa Andrade já se conformara com a saída e arranjara alternativa, mas não conseguia calar a indignação. Ela e os vizinhos esperavam um comportamento diferente da paróquia, pois consideram que a Igreja tem uma obrigação ética acrescida para com os inquilinos.

A irritação sobe de tom quando falam sobre a existência de pelo menos três casas em regime de alojamento local no prédio. “O que é estranho é a Igreja estar a pactuar com este saque a Lisboa”, comenta António Câmara Manuel, programador cultural que habita no segundo andar e tem lá a sede da sua empresa. “A Igreja compactuar com este tipo de capitalismo, sem qualquer tipo de humanidade, é muito estranho”, reforça.

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Ami Daisi vive com a filha de 10 anos e diz-se disposta a escrever ao Papa Nuno Ferreira Monteiro

António, Filipa e Ami Daisi, a outra inquilina informada de que tem de sair brevemente, estão convencidos de que o destino dos apartamentos será o mercado turístico. “Eu sou mãe solteira. Isto vai contra tudo o que diz a doutrina da Igreja, do que diz o Papa Francisco”, afirma Ami, que vive no último andar do imóvel com a filha de dez anos, e que contou a sua história também ao jornal O Corvo, que esta segunda noticiou o caso.

Ao contrário da casa de Filipa, de onde só se avista uma nesga de Tejo atrás do prédio do Ministério da Economia, a habitação de Ami tem vistas desafogadas sobre o rio, a Outra Banda, o Chiado e a encosta do Castelo. “Eu estou a agir como se não fosse sair”, diz. “Eu vou lutar!”

Este prédio foi deixado em testamento à Fábrica da Igreja Paroquial do Colmeal “há uns 40 anos”, estima Filipa Andrade. Ela começou a frequentar a casa em que depois veio a viver ainda criança, quando ali habitava uma tia. Em 1999 instalou-se com a familiar para estar perto da Faculdade de Belas-Artes, mais tarde tornou-se ela a inquilina. Em 2007, depois de umas obras feitas pela paróquia, celebrou um contrato por cinco anos, renovável anualmente. Neste momento pagava 675 euros de renda.

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Filipa Andrade foi a única que, para já, abandonou o prédio Nuno Ferreira Monteiro

Em Maio, Filipa recebeu a carta que lhe dizia que em Novembro teria de sair, assinada pelo procurador da paróquia, o advogado Luís Lucas Laires, com escritório em Lisboa. Respondeu-lhe e enviou uma missiva semelhante ao pároco do Colmeal, Pedro Simões, propondo uma actualização da renda e não o fim do contrato. Na epístola para o sacerdote seguia ainda uma citação do Papa Francisco: “Digamos juntos, de coração: nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá”.

Filipa e Ami deslocaram-se mesmo a Góis para falar pessoalmente com o pároco. “Eu não lhes dei nenhuma esperança”, diz o padre Pedro Simões. “Pelos vistos os inquilinos estão a usar os apartamentos para fazer alojamento local ilegal e, sendo assim, não havia outra solução que não o despejo”, argumenta, acrescentando que tem o apoio dos restantes membros da fábrica paroquial: “O padre não decide sozinho. Isto foi uma decisão colegial, do conselho económico.”

“Eu assumi a paróquia há coisa de um ano”, relata Pedro Simões, que, além do Colmeal, tem outras sete paróquias a seu cargo, entre Góis e Vila Nova de Poiares. Admitindo que ainda está a inteirar-se de todos os assuntos do Colmeal, o sacerdote refere que Lucas Laires, o procurador, “deu provas lícitas” à paróquia de que aquelas três casas têm sido usadas para alojamento local ilegal. “Eu confrontei-as com essa situação e elas negaram.”

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No edifício existem vários apartamentos em alojamento local Nuno Ferreira Monteiro

“Sempre partilhei casa e nunca o escondi. Não faço alojamento local. Agora não posso ter ninguém em casa?”, insurge-se Filipa Andrade. “As pessoas estiveram lá seis meses, um ano, três anos, partilharam despesas.”

O pároco afirma que “os inquilinos não estão a ser correctos” e que “a Igreja não pode pactuar com essas situações”. O PÚBLICO tentou contactar Luís Lucas Laires, sem sucesso.

Filipa foi para já a única moradora a sair na data estabelecida. O contrato de Ami Daisi termina em Abril de 2020, mas a primeira carta que recebeu, em Outubro, informava-a de que tem de sair em Abril do próximo ano, o que considera ilegal por não ter sido cumprido o prazo mínimo de um ano de antecedência que está escrito no contrato. António Câmara Manuel é o morador mais antigo dos três. Reside no imóvel desde 1988, tem um contrato de 2000 que termina em Março de 2020 e já sabe que também tem de procurar outro sítio para morar.

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