Luzes da ribalta

Parque Mayer é uma fantasia sobre uma fantasia, um olhar para o Portugal salazarista com a revista à portuguesa como pretexto — um filme com mais ambição que resultados mas que é o nosso APV preferido em anos.

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O que Parque Mayer transpira, sobretudo – e é isso que nos seduz nele – é a assumida cinefilia do seu realizador
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Talvez a melhor maneira de olharmos para Parque Mayer seja descartando a “ganga” que rodeia, desde há muito tempo, as declarações públicas de António-Pedro Vasconcelos e tomando o filme por aquilo que ele é, apenas: um filme. Em nosso entender, pelo menos, o melhor filme de Vasconcelos em muito tempo, certamente desde Os Imortais — o que não faz dele nem um grande filme, nem o isenta de ter problemas estruturais recorrentes nas últimas obras do cineasta. Que vão de uma duração algo excessiva a uma utilização aterradora da banda-sonora, que carrega a traço grosso em vez de apenas colorir, passando pela queda pontual no maniqueísmo telenovelesco (sobretudo na relação entre Deolinda, a aspirante a vedeta, e o seu namorado, vilão de opereta ao qual nem falta ser PIDE).

O que Parque Mayer transpira, sobretudo — e é isso que nos seduz nele — é a assumida cinefilia do seu realizador, a vontade de fazer um panorama dos bastidores do teatro popular como os franceses em tempos fizeram, como se fosse um Becker ou um Carné (Vasconcelos fala de Renoir, de French Cancan ou A Comédia e a Vida — mas nenhum deles precisou de 134 minutos para contar as suas histórias...). Que essa vontade de adaptar a ideia à revista à portuguesa não possa ser cumprida — porque a revista é um cadáver adiado que já não pode voltar a ser o que foi; porque a produção nacional não tem um orçamento ilimitado nem um decorador como Alexander Trauner para lhe dar a volta — acaba por cair bem a Parque Mayer. O que foi a revista, no fundo, senão um teatro desenrascado, fazendo das fraquezas forças, parente pobre do palhaço rico? Que Parque Mayer seja “o muito que se pode fazer com o pouco que se tem” é perfeito para falar da revista — e de um período em que era um espaço não inteiramente seguro de crítica social e protesto contra o regime, em que um par de horas num teatro funcionava como escape do cinzento da vida.

Se a revista eram duas horas de fantasia, então Parque Mayer quer ser uma fantasia sobre uma fantasia: o encontro de três “tipos” característicos (a “ingénua” Daniela Melchior, o “mariola” Diogo Morgado, o “senhor doutor” Francisco Froes) numa história que fala de Portugal, onde aquilo que é dito meio a rir no palco é vivido sem sorrisos na vida real, com os actores de televisão e da telenovela a substituirem as vedetas da revista (afinal, sempre são o mais próximo que temos hoje, quer da revista, quer da indústria e do mercado audiovisual que Portugal nunca teve). É uma clara e justa ideia de mise en scène, que o filme carrega — e, a espaços, sobrecarrega — de relevância contemporânea (violência doméstica, resistência política, homossexualidade, prostituição, corrupção), numa salada que escorrega para o didáctico ou para o redundante mas que Vasconcelos vai gerindo com eficácia. E, sobretudo, dando aos actores espaço para emprestarem densidade e vida às personagens de arquétipo, consubstanciado na maneira como Alexandra Lencastre e Miguel Guilherme emprestam personalidade a papéis secundários, e como Froes e Daniela são absolutamente credíveis enquanto par (falsamente) romântico.

Claro que, depois, tal como a revista quando as luzes do palco se apagam, o que resta de Parque Mayer é muito pouco: um olhar sobre a pobreza de um país e de uma época que nada traz de novo, um filme escorreito e correcto que confirma APV como um cineasta fora de tempo e fora de moda, Dom Quixote que teima em fazer “cinéma de papa” num país polarizado entre a lógica da televisão em grande écrã e o artesanato de autor. Parque Mayer não é nem um nem outro, mas, como a revista que é o centro do filme (e que, em última instância, não passa de pano de fundo), finge bem ser o que não é.

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