Aos proponentes das novas vacinas para o PNV: a vossa proposta carece de fundamentação científica

Os deputados proponentes estão certamente imbuídos das melhores intenções – acredito que terão a humildade de reconhecer o erro e recuar. A bem do PNV e da população.

Os proponentes da inclusão de novas vacinas no PNV (Programa Nacional de Vacinação) escudam-se com a prática médica para afirmar que a sua proposta é cientificamente fundamentada. Tentarei resumir as quatro principais razões por que estão enganados.

O primeiro erro foi ignorar que passar da vacinação a nível individual, prescrita por alguns médicos, para inclusão da vacina no PNV, transporta-nos para problemas qualitativamente diferentes, por vezes contra-intuitivos, mas que têm de ser avaliados. A prescrição individual, se for elevada, alcança tipicamente 30-60% de cobertura vacinal. A inclusão da vacina no PNV alcança coberturas vacinais de 95-98% sustentadas. Entramos num mundo novo. As consequências já não são do domínio da Medicina, são do domínio da Epidemiologia. Passo a explicar.

1.º Eficácia e efectividade da vacina

A eficácia da vacina resume-se a esta ideia: se vacinarmos 100 indivíduos, quantos ficam realmente protegidos? A bula da vacina traz indicação da eficácia e, no caso das vacinas em causa, é muito elevada, o médico sabe-o, isso não está em causa. Contudo, a eficácia da vacina na população raramente é igual à eficácia que está na bula da vacina. Chamamos-lhe por isso efectividade. Há duas razões principais para esta diferença.

(1.º) Os microorganismos causadores de doença não têm todos a mesma “cara” (chamemos-lhe “estirpe”) quando se apresentam ao nosso sistema imunitário. A vacina é fabricada para proteger contra algumas estirpes, mas raramente contra todas. As estirpes previstas pela vacina são as mesmas que circulam na população portuguesa? Não necessariamente. Uma equipe do Instituto Doutor Ricardo Jorge, estimou recentemente que a coincidência entre as 4 estirpes de uma das vacinas para o meningo-B e as estirpes que causam doença em Portugal ronda os 67,9%. Muito aquém da eficácia reclamada para a vacina.   

(2.º) A eficácia das vacinas é estudada pelo fabricante recorrendo a ensaios clínicos. Estes em geral não decorrem em Portugal e há significativos grupos da população que estão à partida excluídos dos ensaios: doentes crónicos, idosos, grávidas, são exemplos típicos. Qual é a eficácia da vacina quando a trazemos para a população real? Raramente é a mesma que foi calculada nos ensaios clínicos. Daí se falar em efectividade.

A Comissão Técnica de Vacinação estuda a efectividade das vacinas candidatas ao PNV português. É por vezes um processo demorado, mas é vital para recomendar ou não a sua inclusão no PNV. De que vale uma vacina com 95% de eficácia se a sua efectividade é muito inferior?

2.º Imunidade de grupo

Um dos possíveis efeitos da vacinação em massa é designado pelos epidemiologistas por imunidade de grupo. Na prática, significa que não necessitamos de vacinar 100% da população para conseguir interromper a transmissão do micróbio na população. Se a percentagem de não vacinados for baixa, estes ficam indirectamente protegidos apenas porque estão rodeados de vacinados. É muito desejável que uma vacina seja capaz de originar imunidade de grupo, mas a única forma de o comprovar é no terreno, os ensaios clínicos da vacina não o provam e, novamente, não é um assunto que o médico explique a quem prescreve a vacina. Por várias razões, há vacinas que não originam imunidade de grupo. Uma efectividade abaixo de 90%, ou uma vacina que não impede a existência de portadores assintomáticos, por exemplo, não origina imunidade de grupo. Novamente, a Comissão Técnica de Vacinação acompanha a capacidade das vacinas para o fazer. É essencial para tomar uma decisão sobre inclusão no PNV. Não existe evidência que suporte a existência de imunidade de grupo pela vacina meningo-B ou pela vacina para rotavirus.        

3.º Impacto da vacinação em massa sobre a biodiversidade do agente patogénico

Como já referido acima, muitas vezes o mesmo microorganismo causador de doença pode apresentar-se com várias estirpes. Simplifiquemos supondo que são só duas: X e Y. Suponhamos também que X e Y competem entre si para colonizar a população portuguesa. Se uma vacina apenas contra o X entrar para o PNV, vamos beneficiar artificialmente o Y. A médio prazo, podemos cair numa situação em que o X desapareceu e toda a doença é agora causada pelo Y... mas para o Y não há vacina: é um exemplo perverso da vacinação em massa que tem de ser acautelado. Novamente, não estamos no domínio da Medicina. Este exemplo simplifica situações bem reais que preocupam actualmente a Comissão Técnica de Vacinação.

4.º E chegamos à vacina do papiloma vírus (HPV). Na Europa, apenas a Áustria, República Checa, Itália, Croácia, Suíça e Liechenstein adoptaram vacinação de rapazes para HPV.
A vacina para o HPV foi introduzida em 2008 no PNV português para proteger a população feminina do cancro do colo do útero. Em Portugal, morriam 200 a 300 mulheres por ano devido a este cancro, e a inclusão no PNV tem todo o apoio da Comissão Técnica de Vacinação. Mas os homens não têm útero. Nestes, a carga de doença causada pelo HPV, nomeadamente cancro, é incomparavelmente inferior. As mulheres funcionam como “reservatório” do vírus para os homens e vice-versa. A vacinação em massa das mulheres protege indirectamente os homens. Por esta razão, a generalidade dos estudos de custo-efectividade em homens efectuados entre 2005 e 2011, indicavam que elevada cobertura vacinal das mulheres torna a relação custo-efectividade da vacina para homens desfavorável. Há uma excepção – o grupo dos homens que têm sexo com homens. Neste grupo, os resultados são favoráveis à vacina. A Comissão Técnica de Vacinação acompanha o assunto. A efectividade da vacina e a imunidade de grupo são particularmente difíceis, porque o desenvolvimento de cancro é um processo lento e infrequente.

A inclusão das novas vacinas no PNV carece, e muito, de fundamentação científica. Por isso é tão perigosa para a credibilidade do PNV. Por isso é uma ingerência da política num assunto que por enquanto devia estar no foro técnico-científico. Os deputados proponentes estão certamente imbuídos das melhores intenções – acredito que terão a humildade de reconhecer o erro e recuar. A bem do PNV e da população.

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