A natureza fracturante da tauromaquia e a necessidade de uma transição pacífica

Permanece por resolver, em absoluto, a indignação antiga dos que não suportam saber que a tortura de animais em Portugal continua a ser espectáculo.

Após semanas de debate público, a aliança conservadora que une PCP, PSD e CDS acabou por dominar, levando à redução do IVA para a tauromaquia e contrariando a proposta do Governo. A indignação momentânea que alguns membros da elite opinativa do país – incluindo deputados do PS – tanto proclamaram teve, afinal, resposta célere. Permanece por resolver, em absoluto, a indignação antiga dos que não suportam saber que a tortura de animais em Portugal continua a ser espectáculo.

É que, apesar do negacionismo exibido por alguns, já existe consenso científico em torno do sofrimento animal há muito tempo. Na realidade, não é assim tão surpreendente que espécies de mamíferos (e outros vertebrados), entre as quais se inclui a espécie bovina, com extenso passado evolutivo comum, partilhem características fundamentais do sistema nervoso e percepcionem a dor de forma semelhante.

Este conhecimento e a evolução da atitude humana face aos direitos intrínsecos dos outros animais têm mobilizado uma transição global que, tendo em conta a escala, assume proporções civilizacionais. A globalização e a convergência para valores comuns têm contribuído para tal.

Existem diversos sinais dessa transição em curso. Um exemplo é a abolição sucessiva da tauromaquia (e rituais semelhantes), sobretudo durante a última década, em regiões diversas que incluem a Catalunha e vários estados do México. Particularmente visível é também o aumento do número de organizações dedicadas aos direitos dos animais e respectivos voluntários. As redes sociais muito vieram ajudar neste sentido. Se há 20 anos, em Lisboa, era difícil mobilizar mais do que algumas dezenas em protesto contra a tauromaquia, hoje as marchas anuais reúnem milhares de pessoas.

É incontornável: a tauromaquia gera tensões e afecta a coesão social do país. Neste contexto, toda a controvérsia seria menos surpreendente se uma Assembleia da República (AR) corajosa e progressista abolisse a tauromaquia por decreto ou resolvesse as inconsistências legais que a viabilizam: a) desagregando a tauromaquia das outras actividades culturais (perfeitamente consensuais), na lei que estabelece o regime de funcionamento dos espectáculos de natureza artística (Decreto-Lei 23/2014); b) ilegalizando as actividades que violem o regime jurídico dos animais (Lei 8/2017) que reconhece os animais como dotados de sensibilidade; ou c) expandindo a lei que criminaliza os maus tratos a animais de companhia (Lei 69/2014) às espécies actualmente exploradas em espectáculos.

Sendo assim, qual deve ser a visão do decisor político face a questões cuja natureza fracturante se vai acentuando? No mínimo, este deve atender às mudanças que se vão anunciando na sociedade, prevenindo a acumulação de ressentimento junto dos que as reivindicam há muito tempo, não deixando de oferecer alternativas aos que as não compreendem. Retirar progressivamente as verbas públicas e os benefícios fiscais faz parte do mínimo razoável.

E foi precisamente essa a oportunidade que se perdeu. Votar favoravelmente a proposta fiscal do Governo teria representado apenas um pequeno passo. Não teria sido nada de revolucionário ou disruptivo. Acima de tudo, teria sido um passo importante para uma transição gradual, controlada e pacífica – algo que deveria agradar aos conservadores da AR. Mas se não existe esta noção de responsabilidade junto destes últimos, é crucial votar em 2019 tendo isto em conta. Afinal, do que precisamos na AR para que haja progresso... é mesmo de progressistas.

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