Serviço Nacional de Saúde: o trabalho dá saúde?

O trabalho é e vai continuar a ser central, condicionante e determinante, na vida das pessoas e na sociedade. E, por isso, a saúde de cada um e, em geral, a saúde ao nível social, está intimamente relacionada com o trabalho.

Questionando um velho provérbio popular, este artigo é sequência de um outro, publicado há dez meses neste jornal, cujo título e conteúdo assentou numa metáfora relacionada com o mundo do trabalho: “o trabalho tem um braço longo” [1].

Tendo ainda o Serviço Nacional de Saúde (SNS) como enfoque de fundo, o que aqui se visa é chamar a atenção para um domínio social que, para além de do SNS ser suporte (aspecto onde incidiu o referido artigo anterior), também muito solicita (ainda que indirectamente) a sua missão, organização, profissionais de saúde e meios.

Referimo-nos ao trabalho em geral, ao trabalho que é realizado nas empresas, na administração pública em geral (central, local e empresarial) e noutras organizações. E aqui, especificamente, à sua relação com a (falta de) saúde das pessoas.

“A saúde não pode ser definida por uma referência exclusiva à ordem biológica. É evidente que a saúde implica também, como assinala a Organização Mundial de Saúde, a ordem psíquica e social” [2].

O trabalho é e vai continuar a ser central, condicionante e determinante, na vida das pessoas e na sociedade. E, por isso, a saúde de cada um e, em geral, a saúde ao nível social, está intimamente relacionada com o trabalho.

Não se pode, pois, negar pertinência ao provérbio “o trabalho dá saúde”, na medida em que o trabalho, para além de ser óbvio que é condição de sustento físico básico de cada um, pode (deve) ser também factor de equilíbrio mental, de realização profissional e pessoal, de integração social. Logo, de saúde. Mesmo sendo mais exigente no conceito de saúde como tendo esta na acepção da clássica definição da Organização Mundial de Saúde: “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades” [3].

Mas, nem sempre é assim. Talvez mesmo se possa dizer que raramente é assim.

O que não surpreende. Não se pode escamotear que, na realidade, o trabalho, até pelo peso que nele tem de caracterizador a subordinação jurídica, a coerção (e que o distingue de outras actividades “não trabalho”), o trabalho é, antes de tudo, um conjunto de constrangimentos e solicitações impostas às pessoas.  

Sim, “a lógica que preside à génese das formas de trabalho e situações de trabalho é, em primeira instância, totalmente estranha à lógica que preside à construção da saúde” [4].

Sim, o trabalho é, deve ser, em princípio, suporte da saúde das pessoas. Mas pode também ser factor de doença e, até, de morte.

O cancro, segunda maior causa de morte em Portugal a seguir às doenças cardiovasculares, é a doença que, em pessoas e recursos, mais solicita o SNS. Directa ou indirectamente, imediata ou diferidamente, muitas das situações de cancro não terão origem ou serão agravadas nos locais de trabalho, onde muitos trabalhadores são todos os dias expostos a substâncias, produtos ou processos potencialmente cancerígenos?

As doenças respiratórias são a terceira causa de morte em Portugal (matam mais de 22.000 pessoas por ano) e também são das que mais causam a procura de cuidados de saúde nos centros de saúde e dos hospitais. Até que ponto isso não tem muito a ver, ainda que de forma indirecta e a médio ou longo prazo, com o trabalho, concretamente, com a utilização, nos locais de trabalho, de certos materiais, produtos e processos, bem como com ambientes de trabalho sem condições aeróbicas e térmicas?

Cresce o número de pessoas com lesões ou doenças músculo-esqueléticas que, pelo sofrimento e incapacitação pessoal e profissional que causam, tanto levam as pessoas a procurar cuidados nas unidades de saúde. O que é que tal não terá a ver com a progressiva (sobre)intensificação (em duração e ritmo) e (des)organização do trabalho?

Aumenta o consumo de antidepressivos, sedativos e ansiolíticos [5], indicador de muito sofrimento mental (e, em relação recíproca e em escala, com sofrimento físico), que tanto também fomentam a procura dos inerentes serviços do SNS.

Não terá muito isso origem ou será agravado também pelas condições de pressão psicológica, de assédio moral, de (sobre)intensificação do trabalho do ponto de vista físico ou mental (ou ambos, em escala), muitas vezes até ao esgotamento (burnout), único indicador que, para muitos empregadores, é limite da hipersolicitação física e ou mental das pessoas?

Muitos estudos (nacionais, europeus, internacionais) há já a responder afirmativamente a estas dúvidas. Contudo, continua a ser muito pouca (e, sobretudo, inconsequente) a percepção social disso.

Da parte dos trabalhadores, estes raramente estabelecem esta relação de risco entre as suas condições de saúde e as condições (materiais e sociais) em que trabalham nos seus locais de trabalho. Não apenas por falta de suficiente informação e formação para a sua relativamente difícil concretização e objectivação, tanto mais que tais condições de trabalho em que o risco de saúde prepondera são “embrulhadas” na sub(sub, sub, sub...)contratação, na precariedade dos vínculos de trabalho, na incerteza e instabilidade (funcional, de organização e duração do tempo de trabalho e de local de trabalho), no cada vez maior isolamento e falta de suporte social em que as pessoas trabalham, em decurso de “novos” métodos de gestão assentes justamente na individualização do trabalho pelo fomento da competição profissional desenfreada, e na avaliação (ou avaliacionismo) descontextualizado da condição física mental de cada um.

Também porque (e talvez até principalmente) tal relação, ainda que percebida, é, muitas vezes “abafada” pelos trabalhadores, sob o medo de serem, de algum modo, prejudicados nas suas condições salariais ou, até, de, serem despedidos.

Mas, de facto, tudo isto se projecta no SNS pelo menos quando da manifestação expressa da doença, se não ainda na vida activa das pessoas, depois, pelo seu efeito diferido (ainda que escamoteado no período de latência de certas doenças), já na condição de reforma ou aposentação.

Contudo, neste contexto de pouca percepção social das consequências do trabalho na saúde das pessoas (e, daí, no SNS em geral), preocupa mais ainda, tendo em conta a inerente competência e obrigação legal de todos os profissionais de saúde (muito especialmente dos médicos [6]), que tal não seja credivelmente evidente na (maior) notificação de doenças profissionais. Há, em Portugal, não restam disso dúvidas, uma grande subnotificação das doenças profissionais.

Aliás, mais em geral, não é descabida a ideia de que os instrumentos de análise da Saúde Pública carecem de sensibilidade para identificar esta fonte de risco para a saúde das pessoas como trabalhadores e, logo, como eventual factor de acrescida solicitação das unidades de saúde e, em geral, da organização, profissionais de saúde e meios materiais e financeiros do SNS.

A propósito, nos sucessivos Relatórios do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, e nomeadamente no último (Relatório da Primavera OPSS 2018 [7]), é ínfima a importância dada a este domínio. Idem nos Planos Nacionais de Saúde, nomeadamente na sua última versão (Revisão e Extensão a 2020 [8]).

É uma ilusão presumir que as projecções das condições de trabalho na saúde dos trabalhadores ficam, pelo contrato de trabalho e pela Lei (que neste domínio tão “letra morta” é), ou pela burocracia administrativa ou judicial, “aprisionadas”, não ultrapassando a “caixa negra” das paredes e portas das empresas (e dos departamentos da administração pública) onde se situam os locais de trabalho.

Acresce que é também uma ilusão pressupor que, em Portugal, actualmente (e praticamente desde sempre), existe nas empresas e na administração pública (como empregadores) uma resposta (políticas organizacionais, organização do trabalho, processos, meios, competências) de Medicina no Trabalho (e, mais em geral, de Saúde do Trabalho) suficiente e eficaz, quer do ponto de vista formal, quer, mais ainda, do cumprimento da Lei neste domínio nos locais de trabalho.

A propósito, ainda não há muito tempo, um conhecido médico denunciava publicamente que “a Medicina do Trabalho é uma fraude [9]”. Vá-se ou não tão longe na crítica à actual organização e funcionamento dos serviços da segurança e saúde no trabalho (como obrigação legal que é, por regra, de todos os empregadores [10]), de facto, é preciso que a Medicina no Trabalho não se esqueça que... é do Trabalho [11]. 

Perverso é que as más condições de saúde e de segurança nos locais de trabalho são uma forma oculta de os empregadores transferirem para os trabalhadores (como tal e como pessoas na sua humana condição física, mental e social, obviamente, mas também como contribuintes e como cidadãos) e para o Estado (e, concretamente, para o SNS) os custos humanos, sociais e económicos do sofrimento e das doenças de algum modo associadas às (más) condições de segurança e saúde em que as pessoas trabalham. E que eles, empregadores, por inequívoca obrigação legal, deverão prevenir.

De facto, as convenções da Organização Internacional de Trabalho e as directivas da União Europeia transpostas para o direito português (através do Código do Trabalho e outra regulamentação [12]) estabelecem que os empregadores são obrigados a “garantir aos trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho”.

É neste sentido e sob esta preocupação que, ponderando o condicionalismo actual do SNS, se julga pertinente interrogarmo-nos se o Ministro do Trabalho (e o Ministro das Finanças...) não se interessa(m) especialmente (também) pelo que se passa no SNS e se a Ministra da Saúde não se interessa especialmente (também) pelo que (não) se passa ao nível da prevenção dos riscos profissionais nos locais de trabalho.

Tem isto como perspectiva a reflexão (e acção) política, legislativa, institucional e administrativa de inerentes questões profissionais (formação, condições de trabalho e sensibilidade dos profissionais de saúde, seja no contexto do SNS, seja no contexto das organizações empregadoras, dentro dos Serviços de Saúde do Trabalho), organizacionais (estratégias, estruturas, organização, metodologias, meios e gestão orientadas também para a valência ocupacional da Saúde Pública, por parte das respectivas unidades orgânicas do SNS), e administrativas (missão, competências, organização, meios e acção das Autoridades de Saúde  e para as Condições de Trabalho).

Há que ponderar o quanto, para além da regulamentação e dos formalismos administrativos, não tem sido efectiva e consequente a consideração das consequências das condições de trabalho na saúde das pessoas na gestão e funcionamento das organizações como entidades empregadoras. Mas, também, nas políticas, estratégias, organização e meios dos domínios do Trabalho e da Saúde Pública, designadamente, no contexto da sua projecção no Serviço Nacional de Saúde (ainda que não só).

Como se escrevia já lá vão oito anos, o Trabalho não pode, (também) da Saúde Pública, continuar a ser “um ângulo morto” [13].

Positivamente, tem diminuído o desemprego, aumentando a quantidade de emprego. Mas não é seguro afirmar-se que aumentou a qualidade do emprego.

Daí, voltando ao velho provérbio popular, não é seguro afirmar que, por mais trabalho haver, mais saúde há.

Por isso, inclusive de um ponto de vista de análise e perspectiva do SNS (e não só), talvez seja avisado manter presente (e consequente) a dúvida: “O trabalho dá saúde”?

[1] “Serviço Nacional de Saúde: o longo braço do trabalho” (PÚBLICO 13/1/2018 - https://www.publico.pt/2018/01/13/sociedade/opiniao/servico-nacional-de-saude-o-longo-braco-do-trabalho-1799157;

[2] Christophe Dejours: “Comment formuler une problématique de la santé en ergonomie et en médicine du travail” – Em revista le Travail Human, Volume 58 – N.º 1-1995;

[3] Constituição da OMS, de 22/7/1946;

[4] Christophe Dejours, idem;

[5] Em quatro anos, de 2013 a 2016, mantendo-se a precedente tendência de crescimento, duplicou o consumo de psico-fármacos (Relatório do Programa Nacional  de Saúde Mental 2017/2018 – divulgado pela Direcção Geral de Saúde - https://www.dgs.pt/em-destaque/relatorio-do-programa-nacional-para-a-saude-mental-2017.aspx);

[6] Decreto Lei N.º 2/82, de 5 de Janeiro;

[7] De 19/6/2018 - http://www.aenfermagemeasleis.pt/2018/06/19/relatorio-primavera-2018-do-observatorio-portugues-dos-sistemas-de-saude-opss/;

[8] Aprovada pelo Governo em Maio de 2015 - https://www.dgs.pt/em-destaque/plano-nacional-de-saude-revisao-e-extensao-a-2020-aprovada-pelo-governo.aspx;

[9] “Medicina no Trabalho é uma fraude e devia ser nacionalizada” – Dr. José Manuel Boavida - Entrevista à Agência Lusa em 5/7/2018 : https://www.dn.pt/lusa/interior/doencas-cronicas-medicina-do-trabalho-e-uma-fraude-e-devia-ser-nacionalizada---diabeticos-9595165.html . Também em Esquerda.net: 19/7/2018: https://www.esquerda.net/en/artigo/medicina-no-trabalho-e-uma-fraude/56225;

[10] Artigo 73.º do Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho, estabelecido pela Lei 102/2009, de 10 de Setembro;

[11] No sentido de que, sendo determinante a sua acção especializada para que o empregador  cumpra as suas obrigações de prevenção dos riscos profissionais, não “conheça os componentes materiais do trabalho com influência sobre a saúde dos trabalhadores ...”, não se “baseie nas condições ou circunstâncias em que cada trabalhador tenha sido ou possa ser sujeito à exposição a agentes ou factores de risco...” (N.º 2 do Artigo 105.º e N.º 2 do Art.º 44.º da Lei 102/2009, de 10 de Setembro);

[12] Artigo 281.º - N.º 2 do Código do Trabalho, aprovado pela Lei Nº 7/2009, de 12 de Fevereiro e Artigo 5.º - N.º 1 da Lei 102/2009, de 10 de Setembro (que visam concretizar substantivamente um direito dos trabalhadores constitucionalmente “fundamental”, o direito à “prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde” – Artigo 59.º - N.º 1, alínea c) da CRP);

[13] “O trabalho, ‘ângulo morto’ da saúde pública” - PÚBLICO, 2/8/2010 - https://www.publico.pt/2010/08/02/jornal/o-trabalho-angulo-morto-da-saude-publica-19940755 .

 
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