Onda conservadora põe em xeque hegemonia cultural da esquerda brasileira

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A batalha eleitoral brasileira travou-se em torno do eixo petismo-antipetismo. É importante referir que o confronto político decorreu sobre um pano de fundo que, por facilidade, designo por “guerra cultural”. Não há coincidência entre os dois planos, antes convergência e interacção. Uma onda conservadora, que mistura componentes muito diversas, está a atacar a hegemonia cultural da esquerda, depois de ter anulado a sua supremacia política. Não é um fenómeno original, trata-se de uma tendência algo universal. Neste texto limito-me ao fenómeno brasileiro.

Há uma referência obrigatória, um ensaio do crítico literário Roberto Schwartz (Cultura e Política, 1964-1969), escrito em Paris e publicado no Brasil em 1978. A ditadura militar pulverizou os partidos de esquerda. Mas perdeu a batalha das ideias: “Apesar da ditadura de direita há relativa hegemonia cultural da esquerda no país. Pode ser vista nas livrarias de São Paulo e do Rio, cheias de marxismo, nas estreias teatrais, terrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado.” Ou seja: “Nos salões da cultura burguesa a esquerda dá o tom.”

Esta hegemonia projectava-se politicamente na resistência à ditadura e na crítica do capitalismo e do imperialismo. Antonio Gramsci (1891-1937), teorizador da hegemonia, torna-se uma referência do PT e de toda a esquerda brasileira — por vezes abusivamente interpretado. A esquerda esteve afastada do poder nos anos 1980-90, mas continuou a dominar no campo das ideias. Foi um tempo em que nenhum político nem nenhum empresário ousava declarar-se de direita. Os mais reaccionários diziam-se do centro ou até do centro-esquerda. Ser de direita era um tabu. Os portugueses com memória lembrar-se-ão deste fenómeno.

Contra-hegemonia

A ascensão ao poder de Lula e do PT, em 2003, muda os dados. A esquerda acaba por se confundir com o Estado. Por outro lado, a par das reformas sociais, o PT pratica uma “retórica de virtude e superioridade moral”, que cedo será posta em causa pelos escândalos de corrupção. Noutro plano, argumenta o politólogo Fernando Schüler: “O politicamente correcto acaba sendo uma forma cultural de exclusão, porque é a linguagem da elite cultural, da elite da classe média. Sem fazer juízo de valor, ele gera um brutal sentimento de exclusão.”

Entretanto, Lula foi reeleito e ao abandonar a presidência em 2011, tem uma taxa de aprovação de mais de 80%. Os efeitos verificam-se ao retardador. Anota Schüler que o dispositivo de crise da esquerda estava montado. “Decisivo neste percurso é o efeito da Internet. A hegemonia intelectual da esquerda dependia do seu controlo sobre instituições. Universidades, escolas, instituições culturais. Sobre órgãos da Igreja, redacção de jornais e directórios estudantis. E, por óbvio, sua influência brutalmente maior na acção partidária. (...) A Internet explodiu este mundo relativamente fechado. O poder da palavra se diluiu, ou melhor, disseminou-se pelo tecido social. Foi a via de expressão de uma contra-hegemonia.”

O ano de 2013 é um marco. Os jovens de São Paulo saem às ruas protestando contra um pequeno aumento do preço dos transportes — o Movimento Passe Livre. No dia 20 de Junho, mais de um milhão de pessoas descem às ruas em várias cidades. Em Brasília, há uma tentativa de invasão do Congresso. O movimento não tinha raiz política. Mas a esquerda nada percebeu. As manifestações de 2015 já são contra Dilma Rousseff e crescentemente assumidas como de direita. É patente a “radicalização da polarização”. Já não se trata de uma normal polarização política. O desfecho vai ser a destituição de Dilma, em 2016, o último acto da direita tradicional, que em breve será ultrapassada.

Sair do armário

Em Agosto de 2015, a edição brasileira do El País publica uma reportagem intitulada: “A direita brasileira que saiu do armário não pára de vender livros.” Havia muitos colunistas anti-PT. A Rede Globo, com todos os seus meios, há muito liderava um combate sem tréguas contra Lula e contra Dilma Rousseff. Agora é diferente. É uma ofensiva intelectual em grande escala que surpreende políticos e intelectuais. Em 2013, Olavo de Carvalho publicara o panfleto O Mínimo Que Você Precisa Saber para não Ser Um Idiota. É um curioso agitador. Comunista durante a ditadura militar, depois astrólogo e sufi, “filósofo da multidão” e professor na Internet, os seus livros são um sucesso editorial. Assume-se como “parteiro” e “pai espiritual” da nova direita. Denuncia o “projecto comunista” do PT, o risco de “venezuelização” do Brasil, enfim, as feministas e os “gayzistas”. É amigo de Jair Bolsonaro.

Dele diz o filósofo Pablo Ortellado: “Num momento em que ninguém se reivindicava como direita, ele foi um cavaleiro solitário, e essa pregação no deserto rendeu grandes frutos.” Foi precursor em 1996, com um livro O Imbecil Colectivo. Olavo é seguido por uma miríade de autores, como o colunista Reinaldo Azevedo (O País dos Petralhas), o economista Rodrigo Constantino (A Esquerda Caviar) ou o filósofo Luiz Felipe Pondé (Guia politicamente Incorrecto da Filosofia). Em 2014 surge o Movimento Brasil Livre, de jovens conservadores — e que agora entrou no Congresso.

É uma constelação liberal-conservadora, de defensores do “Estado mínimo” e dos valores tradicionais, a que se associam elementos ultraconservadores e autoritários. As igrejas evangélicas deram um importante contributo na vertente do conservadorismo moral. Bolsonaro foi apenas o rosto que reuniu a expressão de todas estas heterogéneas correntes. Esta nova direita é diferente da velha, não é uma coligação de caciques oligárquicos locais, mas uma direita enraizada na população e organizada através do WhatsApp.

O seu objectivo é anular a hegemonia intelectual da esquerda. O seu potencial decorre da combinação entre um conservadorismo “recalcado durante 50 anos” e o momento de aguda crise do PT. A esquerda descobriu nestas eleições que a população brasileira, apesar de valorizar a democracia, era também largamente conservadora e, inclusive, adepta de soluções de força perante a violência e a insegurança. A “guerra cultural” trava-se privilegiadamente nas redes sociais, onde a esquerda está em inferioridade.

A questão da hegemonia está por resolver. A nova direita não tem ainda garantia de sucesso político. “WhatsApp elege mas não governa”, diz um colunista. A velha direita pesa muito no Congresso. A principal lição é outra: enquanto a esquerda permanece parada e enredada nas suas teias, foi a direita que se renovou?

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