Demorámos mais de 35 anos a descobrir Midori Takada

Lançado em 1983, Through the Looking Glass era um objecto tão singular que foi votado ao desprezo. A reedição em 2017 da obra da japonesa Midori Takada elevou-o a clássico do minimalismo. Agora é a vez da percussionista, entre 13 e 17 de Novembro, se estrear em palcos portugueses.

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A memória de Midori Takada é bastante exacta. Faltavam breves momentos – ela arrisca precisar que terá sido “um minuto” – para se estrear como música profissional, enquanto percussionista, com a RIAS Symphonie-Orchester, de Berlim, quando naquela curta espera para a entrada em palco percebeu que o seu chamamento para a música não era bem aquele. Não se tratou, garante, de um delírio provocado pela ansiedade, de uma momentânea batida em retirada daquele instante para se imaginar num outro lugar em que os nervos lhe dessem descanso, nem um acesso crítico de stage fright. “Não sei muito bem porquê”, confessa ao Ípsilon sem conseguir travar o riso, “mas, de repente, senti que aquele não era o sítio certo para mim. E foi imediatamente antes, um só minuto antes, de ir para o palco no meu primeiro concerto.”

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Não é grande frequentadora da internet, e por isso foi uma surpresa quando percebeu que tinha havido um “milagre”: Through the Looking Glass ganhara o estatuto de obra fundamental e de culto

À sua volta, recorda Midori Takada, os restantes músicos da orquestra mostravam-se “gentis” e encorajavam a sua estreia, numa noite de 1978 em que lhe coube interpretar o Concerto para Percussão do compositor francês André Jolivet. Takada tinha-se formado pouco antes na Universidade de Tóquio e dava, assim, o primeiro passo de um percurso que havia de provar-se bastante mais errático do que previra até então. Até porque esse primeiro passo foi já hesitante, a denunciar um desejo que crescia em si de se dedicar à investigação profunda da música africana e da música asiática, assim como do minimalismo. E foi tudo em tudo isso que enfiou a cabeça logo a seguir – enquanto prosseguia a sua actividade de intérprete de música contemporânea, passou a expandir a sua aprendizagem e a sua cultura musicais muito para além do reportório mais ou menos canónico que lhe era pedido para tocar nas grandes salas sinfónicas.

A intuição que a tomou de assalto naquela noite havia de levá-la a explorar tanto a música de fortes alicerces rítmicos de países africanos como Burkina Faso, Senegal ou Gana, mas também de asiáticos como Coreia do Sul ou Indonésia ou oceânicos como a Papua Nova-Guiné, e de um autor fundamental no seu percurso chamado Steve Reich. E havia ainda estudar o gagaku, tradição ancestral japonesa, e música budista. Reich, o papa do minimalismo, era um amor que já antes vinha experimentando, tendo interpretado peças como Clapping Hands ou Piano Phase – e que retomaria, mais tarde, a bordo do Mkwaju Ensemble. O minimalismo, reflecte agora, cativou-a por se tratar de “um sistema muito moderno de estrutura, e que por isso não é apenas expressão”. “A música clássica era pensada como expressão de emoções, de sentimentos e de paixões humanas, mas o minimalismo é um sistema que permite estabelecer uma relação com os outros – outras culturas, outras tribos, outros mundos”, defende. “Foi isso que me interessou.”

Se o minimalismo de Reich não era de acesso muito complicado para alguém que se movimentava na esfera da música erudita contemporânea, a pesquisa por músicas tradicionais (por vezes distantes) não era algo que se pudesse realizar sem uma considerável tolerância à frustração. “Há 35 anos era muito difícil descobrir informação no Japão sobre África e música africana”, diz Midori Takada. Daí que após muito peneirar, a percussionista acabou por conseguir deitar a mão a alguns álbuns de vinil que documentavam recolhas de gravações de campo e que ouviu com absoluta devoção, transcrevendo minuciosamente os ritmos e as estruturas daquelas peças para as poder reproduzir e analisar com a devida atenção. “Depois tentei tocar sozinha aqueles ritmos e estruturas polirrítmicas, e fiz a minha própria música sem qualquer ajuda.”

Daí que, nos anos 80, por alturas da visita ao Japão do mestre ganês Kakraba Lobi, virtuoso tocador de balafon, a oportunidade oferecida a Takada de o acompanhar em palco havia de espantar sobremaneira o músico africano. “Ele ficou muito surpreendido e perguntou-me como é que era possível eu conhecer a música e os ritmos africanos”, recorda. “E eu não consegui explicar-lhe que era apenas de ouvir alguns discos. Mas essa aprendizagem foi uma óptima experiência para mim e foi a partir daí que ganhei alguma confiança para trazer a música africana para os meus instrumentos.”

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Desde o início, descreve Midori Takada, aquilo que lhe interessava era tanto a exploração das estruturas de músicas provenientes de outras culturas, como a filosofia que lhes estava associada. E foi juntando todos estes elementos que Midori Takada criou um álbum que era uma autêntica experiência extraterreste, com a obsessividade minimalista aliada ao transe da música percussiva africana, ao mesmo tempo que se via atravessada por pequenas intromissões do jazz de vanguarda. Assim nascia o desconcertante e apaixonante Through the Looking Glass, magnífico primeiro álbum de Midori Takada a que ninguém prestou a mais pequena atenção.

Pouco famosa e pouco nova

Midori Takada não é grande frequentadora da internet. E, por isso, nunca lhe passou sequer pela cabeça perceber se Through the Looking Glass tinha conseguido evitar, de alguma forma, a obsolescência a que parecia certamente votado. Na altura da edição original, em 1983, “o minimalismo não era muito conhecido e não era compreendido pelos fãs de música”, justifica a japonesa. Se já à partida não seria fácil encontrar um público para a sua criação tão singular, Takada não foi propriamente ajudada pela confusão que se instalou dentro da própria editora (RCA) em relação àquele objecto. Through the Looking Glass era peculiar o suficiente para que a editora não soubesse junto de que audiência devia promovê-lo. Acabou por encaminhá-lo para as secções de “clássica contemporânea” nas lojas, onde se limitou a definhar e desaparecer, ignorado por quem, interessado pelas obras de Jon Hassell ou Brian Eno (não muito distantes da música da japonesa), jamais se lembraria de procurar algo semelhante entre obras de Arvo Pärt e Péter Eötvös, por exemplo.

Through the Looking Glass nasceu e quase morreu sem que alguém se tivesse dado conta; a própria Midori Takada admite que se esqueceu do assunto. Tanto assim que, depois dos dois álbuns com o Mkwaju Ensemble, em 1981, só voltou a gravar numa colaboração com Masahiko Satoh Lunar Cruise (1990) e dedicou as décadas que se seguiram na sua carreira de percussionista a concertos com orquestra e a solo, enquanto compunha música para peças de teatro. “As pessoas pensam que eu não compus mais nada depois de Through the Looking Glass”, lamenta. “Eu continuei, mas não tinha qualquer oportunidade para gravar e lançar um novo CD porque nunca foi popular, não tinha editora nem manager. E com o decréscimo das vendas dos CD, as editoras deixaram de gravar músicas de artistas como eu – pouco famosas e pouco novas.”

Foi, por isso, com total surpresa que, há três anos, Midori Takada recebeu um email da editora suíça Mental Groove a propor-lhe a reedição do álbum. Só nesse momento percebeu que, ao contrário do que julgava, o disco que lançou em 1983 pela RCA não tinha sido desprezado pelo tempo. Em vez disso, ganhara uma vida silenciosa e fora, longe dos radares e dos holofotes mediáticos, ganhando um estatuto de obra fundamental e de culto. A internet fez o resto: espalhou o rastilho, acendeu-o e levou-o até à porta da Mental Groove. “Fiquei muito surpreendida e feliz porque uma geração mais nova pôde descobrir e ouvir o disco. Durante muitos anos não soube que se tinha espalhado pelas pessoas e que gostavam tanto.” O espanto é de tal ordem que Takada chama a esta verdadeira ressurreição, muito apropriadamente, “milagre”.

A reedição de Through the Looking Glass – obra que Takada confessa ser influenciada pela literatura de Lewis Carroll em termos de sincronicidade e das “variações de tamanho de Alice, de repente grande e logo a seguir pequena”, mas também os elementos fantásticos e assustadores e a ideia de queda que nos leva a resvalar para outro mundo – foi amplamente saudada em 2017, acabando escolhida como um dos lançamentos do ano um pouco por todo o mundo, e ofereceu a oportunidade à percussionista de finalmente viajar com a sua música. É nesse contexto que agora se estreia em Portugal em dose tripla – a 13 de Novembro na Capela Imaculada do Seminário Menor (Braga), a 15 na Culturgest (Lisboa) e a 17 no Auditório de Espinho. Do cardápio fará certamente parte a música deste clássico serôdio, mas também o material novo que editou no ano passado sob o título Le Renard Bleu e inspirado pela história misteriosa de um deus de uma tribo senegalesa que a percussionista descobriu.

Não podemos ter de volta a oportunidade de acompanhar a obra de Midori Takada conforme a foi pensando (e não gravando) ao longo de três décadas. Mas ainda vamos a tempo de nos deliciarmos com uma música que não dá tréguas enquanto navega pela insistência, pela estranheza, e pela ligação íntima à Natureza e à espiritualidade. Afinal, diz-nos a japonesa, praticar o minimalismo obedece a uma disciplina muito árdua – semelhante à de um monge. E ela pratica-o como poucos.

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