Hora ilegal

O Direito metia-se em tudo, até na porcaria da hora. Pronto, estava decidido: ainda que ficasse mais velho uma hora, viveria no império da hora ilegal.

Acordara à hora do costume. Não tinha posto o alarme por ser fim-de-semana. A hora que o relógio do telemóvel marcara não correspondia à quantidade de luz que ressoava do exterior. Levantou-se num salto e ligou a televisão num daqueles canais de informação em que parece que o mundo está sempre na mesma; em que a dado passo já se adivinha o texto que o jornalista debita. Afinal, era mais cedo uma hora. Pois. Para variar esquecia-se destas coisas que tinha por frívolas de andar com o relógio acertado. Já pensara em guiar-se por um solar, mas os compromissos profissionais não o permitiam.

Beberricou um café e pôs-se a pensar. Sabia bem, por experiência de há décadas, que esta é a actividade mais radical a quem um ser humano pode devotar-se. Afinal o que era o tempo? Assomaram-lhe frases feitas, clichés, aqueles posts com locuções motivacionais que ele mesmo, há dias, havia decidido criar, como “experiência sociológica”. De facto, entre comentários políticos ou sociais que partilhava nas redes sociais, aquelas tretas de que tudo vai ficar bem, do foge de quem não te agarra, do ama-te a ti mesmo, do não te demores onde não és feliz tinham muito mais likes. A percepção de senso-comum inicial estava agora provada experimentalmente. Em geral, ninguém está para ler coisas longas e as frases supostamente motivacionais são mais fáceis de entender e, ao menos por nano-segundos, parecem produzir endorfinas.

Já pouca gente lia livros ou sequer comentários longos. Por inépcia dos autores, muitas vezes, mas também porque, ao contrário do que lhe sucedera naquele dia, os relógios que trazemos dentro de nós há muito se haviam adiantado dias ou meses. A paciência tornara-se um bem escassíssimo e lembrava-se sempre da luta titânica que travara com o Memorial do Convento, por, de início, lhe parecer apenas impossível de ler. O primeiro ímpeto fora desistir, em linha com a boa “condição humana” que anos mais tarde o apaixonara em Malraux. E ainda com a lei mais observada no mundo inteiro: a do menor esforço.

Mas era novo e tantas haviam sido as vezes que retomara a leitura que aprendera a ler Saramago, sendo hoje um dos seus escritores predilectos. Aprende-se a gostar de ler, da mesma forma que se aprende a gostar de qualquer outra coisa. Aqui colocava sempre uma ressalva para as pessoas. Podemos não simpatizar num primeiro encontro – parece que a química ajuda a explicar e, já agora, o Freud também, que dizem ser uma espécie de semideus omnisciente (coitado do defunto que, ao que consta, numa festa, em volta de um charuto pensativo, foi interrompido por uma senhora que reflectia sobre a forma fálica do dito, ao que Freud, irritado por não querer estar sempre a contemplar cabeças de gente deitada em divãs, atirara: “às vezes um charuto é apenas um charuto”) –, mas com o tempo a coisa pode mudar, tais são os mecanismos de defesa que eriçamos quando o desconhecido surge no nosso espaço vital. Embora as décadas lhe tivessem ensinado que, por regra, a primeira impressão é sempre a mais exacta.

Voltava ao tempo e ao seu sentido. Concluía, agora já no banho, que ele era o Grande Ilusionista. Tudo girava em torno dele e era o tempo que nos pregava as maiores partidas. Vivia naquele momento uma delas, a que pomposamente se chama “crise da meia-idade”. Era uma dupla crise, pelo ridículo a que amiúde o expunha e por a própria expressão já dizer tudo: só pode estar em profundo coma quem nem sequer tem direito à idade inteira, mas somente a metade. Achava-se ainda jovem e rejeitava o epíteto de velho quando metia conversa com raparigas mais novas nestas novas aplicações onde o tempo corre à velocidade da luz. Deprimia com a ideia de não poder sair com certa pessoa porque ela o achava velho. “Já tenho pai e avô”, lia a vários passos.

Lavado e enxugado, decidiu não mudar os relógios da casa e continuar a viver na hora antiga. Talvez assim pudesse ficar mais jovem durante algum tempo, pensara. Irreflectido, já se sabe. Então se a hora atrasou, ele passaria a viver uma hora à frente do seu tempo, o que o conduziria a um aniversário natalício antes do devido. Com o relógio de sala que herdara dos pais aberto, puxou os pêndulos e seguiu a “hora legal”. Mais uma expressão que o irritava: o Direito metia-se em tudo, até na porcaria da hora. Pronto, estava decidido: ainda que ficasse mais velho uma hora, viveria no império da hora ilegal.

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