Equipa portuguesa identificou primeiro caso angolano de infecção congénita pelo Zika

Investigadores procuram agora determinar a origem geográfica da estirpe do vírus Zika que chegou a Angola. Talvez tenha vindo do Brasil.

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O mosquito Aedes aegypti, transmissor do vírus Zika, num laboratório em Campinas, no Brasil Paulo Whitaker/Reuters

Em 2017, uma angolana de 33 anos viajou de Angola para Portugal quando estava grávida de 32 semanas. Na 37.ª semana de gestação, as suspeitas de ruptura do saco amniótico levaram-na ao Hospital Garcia de Orta, em Almada – e foi aí que os exames ao feto revelaram uma grave limitação no seu crescimento e malformações no sistema nervoso central. Traçou-se um diagnóstico (provisório) de infecção pelo Zika durante a gravidez, uma vez que uma estirpe deste vírus já tinha sido associada a malformações congénitas, incluindo microcefalia, em que a cabeça e o cérebro são mais pequenos do que o normal originando dificuldades cognitivas, na fala, motoras ou no comportamento. O bebé, uma menina, nasceu ao fim de 38 semanas de gestação e o diagnóstico de infecção pelo Zika veio a confirmar-se no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.

A descrição do caso foi publicada, a 25 de Julho, na revista Transactions of the Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene. É o primeiro caso de microcefalia em Angola associado à infecção pelo Zika, mais exactamente à estirpe asiática deste vírus. “Tanto quanto sabemos, este é o primeiro relato que mostra a circulação da linhagem asiática em Angola. É o primeiro caso confirmado de síndrome congénita por Zika no continente africano e o primeiro detectado [importado] em Portugal”, escreveu a equipa no artigo científico, assinado em primeiro lugar pela médica Madalena Sassetti, do Hospital Garcia de Orta, e que inclui outros médicos deste hospital e investigadores do Centro de Estudos de Vectores e Doenças Infecciosas do Instituto Nacional de Saúde.

A outra linhagem principal do Zika é a africana, isolada pela primeira vez em 1947 no Uganda, quando o vírus foi descoberto, e para esta estirpe não estão descritos quaisquer casos de microcefalia. Mas a partir de 2007, num surto na Micronésia, e depois em 2013-2014, na Polinésia Francesa, a estirpe asiática revelou que este vírus não era tão benigno que só provocasse, como se pensava até aí, sintomas parecidos com os da gripe. O grande boom das complicações ligadas à linhagem asiática do Zika ocorreu no Brasil, onde o vírus terá chegado provavelmente em 2013, deixando um rasto de milhares de casos de recém-nascidos com microcefalia. Não existe uma vacina para o Zika.

“Do que temos conhecimento, os casos clínicos de infecções com complicações neurológicas graves (congénitas ou não) têm todos sido associados unicamente a estirpes da linhagem asiática”, explica a investigadora Líbia Zé-Zé, do Centro de Estudos de Vectores e Doenças Infecciosas, e uma das autoras do artigo científico. “Até à divulgação do nosso trabalho, não tinha sido reportado nenhum resultado de diagnóstico molecular que permitisse confirmar a presença de estirpes da linhagem asiática em África continental”, nota a investigadora, explicando por que é importante esta identificação em termos de saúde pública: “A introdução da linhagem asiática pode levar a ocorrência de casos de infecção congénita em África.”

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O vírus Zika numa imagem de microscopia electrónica de transmissão Cynthia Goldsmith/CDC/Reuters

Na realidade, o artigo menciona que se tem registado recentemente um aumento da incidência de microcefalias congénitas em Angola, sobretudo no Sul da região de Luanda. “Este aumento pode ser importante devido à potencial disseminação do vírus Zika de Angola para outros países da África continental”, lê-se. “A expansão geográfica da estirpe asiática do vírus Zika teve um impacto muito significativo em muitos países”, acrescenta Líbia Zé-Zé. “Para além do Brasil, em toda a América do Sul, Central e Norte foram reportados milhares de casos de Zika nessa vaga de 2015. Em África, Cabo Verde é um país com muito turismo e voos directos do Brasil, o que justifica a sua introdução já há dois anos.”

Para confirmar as suspeitas iniciais de infecção pelo vírus Zika da angolana que veio a Portugal (que não relatou sintomas de infecção), enviaram-se para análise no Instituto Nacional de Saúde várias amostras recolhidas na mãe e no bebé após o nascimento. “Numa das amostras [de urina] do bebé detectou-se por biologia molecular a presença dos ácidos nucleicos do Zika, o que permitiu confirmar a infecção congénita por este vírus”, diz-nos Líbia Zé-Zé. Além disso, sequenciou-se uma pequena porção do genoma do vírus, determinando-se que a estirpe causadora da infecção pertencia à linhagem asiática.

Expansão continua

De onde veio esta estirpe do vírus que chegou a Angola? Ainda não se sabe ao certo mas já há pistas. O Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, a equipa do investigador português Nuno Faria, da Universidade de Oxford (Reino Unido) estão a investigar esta questão, numa colaboração que envolve ainda o Ministério da Saúde de Angola e outras instituições angolanas e brasileiras. “Estamos a trabalhar no genoma completo deste vírus de forma a ter dados suficientes para avançar com esta análise”, conta Líbia Zé-Zé. “No seguimento deste trabalho de colaboração, com a análise de sequências quase totais do genoma desta estirpe e de mais duas amostras de doentes angolanos, os dados genéticos sugerem que o vírus Zika poderá ter sido introduzido em Angola a partir do Brasil.”

Será que a infecção pela estirpe africana (mais benigna) tem alguma imunidade contra a estirpe asiática? “A linhagem asiática resultou de mutações que se foram acumulando quando o vírus saiu de África para a Ásia. As infecções prévias causadas por estirpes da linhagem africana conferem alguma imunidade à estirpe asiática, mas não está completamente esclarecido até que ponto”, responde a investigadora. “A percentagem da população com imunidade para Zika (a linhagem africana) é elevada em algumas regiões de África e noutras simplesmente não há estudos.”

Num mundo cada vez mais global, este vírus continua a expandir-se. “O Zika é transmitido essencialmente por picada de mosquitos do género Aedes, embora também possa ser transmitido por contacto sexual, transfusões sanguíneas e aos fetos pelas mães. A expansão geográfica destes vírus é facilitada pela expansão e introdução das espécies de mosquitos vectoras em novas localizações geográficas, e como resultado da globalização. A expansão geográfica do Zika ainda está em curso, embora de uma forma menos acelerada do que em 2015-2016”, sublinha Líbia Zé-Zé. “O impacto real do vírus Zika, nomeadamente as consequências a longo prazo das infecções congénitas e as diferenças observadas na percentagem de casos e severidade dos casos clínicos em diferentes países, ainda está longe de ser completamente compreendido.”

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