Troféus de caça

Se tiver sido um agente a tirar fotos dos três foragidos ou, pelo menos, a permiti-lo, essa pessoa está a mais na PSP.

A divulgação na imprensa das fotografias dos três foragidos dos Juízos de Instrução Criminal do Porto, onde o juiz competente havia determinado a aplicação da mais grave das medidas de coacção processual (prisão preventiva), já capturados num parque de campismo em Gondomar, constitui facto criminoso e inadmissível num Estado de Direito democrático e social como é o nosso. Por isso, fica desde já uma palavra de reconhecimento para a imediata decisão do Ministro da Administração Interna (MAI) e da Direcção Nacional da PSP, no sentido de, junto da Inspecção-Geral e do Comando Metropolitano, se apurarem as circunstâncias em que este tristíssimo evento ocorreu.

O título Esta (Não) é a Minha Polícia, livro de Alberto Costa (2002), ex-MAI, assomou-me de imediato ao espírito. E, a bem de todos nós, de facto, não é.

Ponto prévio: não sabemos ainda quem tirou as fotos e esse é um ponto nodal na investigação, mas se tiver sido um agente da PSP a fazê-lo ou, pelo menos, a permiti-lo, então essa pessoa está a mais numa força de ordem e segurança com 150 anos de serviço aos portugueses e que nos orgulha.

A moeda boa tem de expulsar a moeda má, invertendo a formulação da Lei de Gresham. Tirando casos esporádicos de abusos, que ocorrem em qualquer Estado, bastando lembrar que qualquer agente ou militar é um ser humano, por natureza imperfeito, tenho muito orgulho nas nossas forças de segurança e nos nossos órgãos de polícia criminal, que bem souberam, ao longo destas já mais de quatro décadas, passar de um modelo autoritário para um modelo democrático de polícia.

Quem tirou as fotos e, eventualmente, aqueles que o permitiram, cometeram o crime do art. 199.º do Código Penal, uma vez que não é de prever que qualquer um dos detidos tenha consentido na tomada da sua imagem, nem se pode, obviamente, presumir uma aceitação tácita.

Não existe qualquer tipo justificador ou causa de exclusão da culpa, de nada valendo argumentar com a liberdade de informação e o respectivo dever, uma vez que tal em nada interessava à operação em curso. Legítima foi a prévia divulgação das imagens como forma de auxiliar à sua captura. O que se passou a seguir é apenas crime, relativamente ao qual deve estar a ser aberto inquérito.

Os media que publicaram as fotos (por pudor meu não os indico) – e tenho de registar que o PÚBLICO e outros nunca o fizeram – violaram a Lei de Imprensa (Lei n.º 2/99, de 13/1) e o Estatuto do Jornalista, tendo, por isso, cometido infracções disciplinares que devem ser averiguadas e, sendo caso disso, punidas.

Desde logo, quanto à primeira Lei, um dos limites da liberdade de imprensa é a imagem dos cidadãos (art. 3.º) e os crimes cometidos através da imprensa encontram-se regulados nos artigos 30.º e 31.º.

O Estatuto do Jornalista (Lei n.º 1/99, de 1/1), no seu art. 14.º, n.º 1, al. a), estabelece que estes profissionais, para o que aqui importa, têm por dever “informar com rigor e isenção, rejeitando o sensacionalismo”, respeitar a presunção de inocência (n.º 2, al. c)) e “abster-se de recolher declarações ou imagens que atinjam a dignidade das pessoas através da exploração da sua vulnerabilidade psicológica, emocional ou física” (n.º 2, al. d)). Tudo a determinar que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista não assobie para o lado, por ser a entidade competente para o processamento destes ilícitos disciplinares (artigos 18.º-A e 21.º, n.º 5). A Entidade Reguladora para a Comunicação Social também tem de intervir, bastando ler várias das alíneas do art. 8.º da Lei n.º 53/2005, de 8/11, que estabelece os seus estatutos.

Fortaleza, 2001. O que é conhecido por “chacina dos portugueses” veio-me logo à memória, pelo choque que senti na exposição pública dos arguidos perante toda a comunicação social como se fossem troféus de caça. É isso que queremos para os nossos media? Vale mesmo tudo para ter lucro? Claro que não. E este não pode, por isso, ser tratado como um caso menor, tanto mais que vamos assistindo a uma tabloidização crescente e a um desrespeito pelo Direito constituído. O Brasil, nos dias que correm, não é exemplo em muita coisa. Este não o é também, decididamente.

Suspeitos, arguidos, reclusos são seres humanos dotados da titularidade de todos os direitos que não sejam afectados por uma medida cautelar e de polícia, por uma medida coactiva ou por uma sanção criminal. São, quase sempre, os esquecidos dos esquecidos, como lhes venho chamando. O justicialismo é marca de sociedades totalitárias ou autoritárias e de uma polícia ou de um povo que não pode ser o nosso. A tradição humanista e a comunhão de valores civilizacionais europeus vai sendo corroída por casos como este. O fascínio estúpido que se vai vendo em Portugal por várias instituições jurídicas e não jurídicas dos EUA vai fazendo o seu caminho, sorrateiro, umas vezes, explícito, outras. Não é este o Estado de Direito que os founding fathers pretendiam. Se isto não é tudo para determinar uma actuação sem titubear das autoridades competentes acima identificadas, então não sei o que será.

Tenha sido um agente de polícia, um jornalista ou outra qualquer pessoa, eles não são os meus concidadãos. Eles não são concidadãos de todos nós.

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