Anna Calvi a nu num Hard Club que a recebeu como ela se quer mostrar

A britânica regressou a Portugal para apresentar o seu terceiro álbum, Hunter, lançado no final de Agosto. Depois do concerto de sexta-feira no Porto, actua este sábado no Capitólio, em Lisboa.

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De personagens está o universo musical cheio. Atrás de um instrumento, de uma voz ou de um texto cantado há quem se esconda camuflado por um alter-ego mais forte, mais seguro ou, em oposição, mais frágil ou mais delicado. Há quem cante os amores que nunca teve, os feitos aos quais nunca chegou, e se atire para uma realidade que só vive no plano da ficção.

Mais difícil do que entender a escala cromática de uma guitarra, do que titubear entre as notas mais altas e mais baixas servindo-se da voz ou do que descobrir os ritmos mais pegajosos, será subir a um palco, enfrentar uma plateia sem qualquer subterfúgio cénico que sirva de cortina de fumo para esconder a alma por detrás de um artista.

Foi assim que Anna Calvi, de regresso a Portugal, com o terceiro álbum, Hunter, acabado de sair em final de Agosto, se apresentou esta sexta-feira no Porto, na cara do público que encheu o Hard Club, olhos nos olhos com quem lá estava, despida de qualquer muleta ou camuflagem, para se mostrar tal e qual como é, com histórias que a representam dirigidas a quem nelas se revir. Certo é que estas, as que escreveu, as que ali entregou, são seguramente as dela.

Serviu de prelúdio para a história contada em pouco mais de uma hora Rider to the sea, do primeiro álbum homónimo, com intro de guitarra melodicamente intrigante a anunciar que algo está por desvendar. Será o novo trabalho um dos motivos de espera para o desenrolar da narrativa.

Em Hunter, escrito no despontar do movimento #MeToo, agarra-se com unhas e dentes a ideais feministas e ao universo queer que, apesar de estarem sempre presentes nos outros dois registos discográficos de longa-duração, aqui são entregues de forma mais directa, mais crua, mais honesta.

Passaram cinco anos até chegar ao ponto onde agora está -tempo de intervalo entre o anterior One Breath e o mais recente álbum. E para chegar a este ponto, como desvendou ao Ípsilon no mês passado, terá sido fundamental ter-se apaixonado e seguido a sua namorada para França.

Terá sido fruto desse processo a voz que encontrou para um álbum composto sem espaço para segundas leituras, feito para que a mensagem chegue sem obstáculos, polido por instrumentais igualmente imediatamente decifráveis, ainda que cuidadosamente arranjados.

Foi durante quase todo o tempo em que esteve em palco o seu foco. Grande parte do alinhamento centrou-se no novo material, como, de resto, seria de esperar. Ainda com o som longe de estar nas melhores condições técnicas põe um pé em Indies or paradise, com base de bateria e baixo pré-gravado a servirem de cama para uma voz sussurrada à espera de ganhar asas num refrão lascivo.

Em As a man, ainda muito tímida em palco, escava possibilidades e, de forma mais ritmada, com um teclado mais pop a segurar o tema, questiona o conceito de género e as suas eventuais idiossincrasias.

Na faixa que dá nome ao álbum, Hunter, já se reconhece na britânica o carimbo das performances soltas a que habituou o seu público. É esta música um resumo daquilo que é possível esperar do trabalho, ainda que numa versão mais preparada para se transformar em single. A entrada de batida marcada e teclado nostálgico e o flow da linha de voz transportam-nos para um universo onde Nick Cave se encontra com os segredos de uma pop mais sonhadora.

Em Don't beat the girl out of my boy solta as amarras e segue uma via mais ousada, escolhendo o piso do palco para, deitada, se aproximar do público em poses viris e ao mesmo tempo sensuais, aqui entregando os momentos liricos mais queer do novo trabalho.

Deixa o novo lançamento em suspenso para regressar ao homónimo com o qual se estreou em 2011 e tocar I'll be your man, Suzanne & I, No more words e Desire para depois lá voltar através de Swimming pool, mais lenta, com bateria de batida pop dos anos 80 e teclado encharcado em reverb.

No final do alinhamento vai a Wish, um dos temas mais entusiasmantes do novo álbum. Quase garage rock, com uma guitarra visceral vacilante e refrão introspectivo, descamba num experimentalismo sónico de ruído durante oito minutos de pura adrenalina que termina com Anna Calvi no chão num confronto directo com a guitarra.

Sai do palco para voltar no encore com uma versão de Ghost Rider, que os protopunks Suicide lançaram em 1977, ano que viu o punk nascer. Despede-se sem palavras, que durante todo o concerto não precisou de usar, além das que suportavam os instrumentais que a própria também compõe. De fora ficou o álbum anterior One Breath.

Disse Brian Eno que Anna Calvi será “a melhor coisa a aparecer depois de Patti Smith”. Talvez seja um peso nos ombros que a britânica não queira carregar. A comparação peca por exagerada e por elevar expectativas às quais é difícil corresponder. Porém, ao terceiro álbum e após várias passagens por Portugal, é seguro afirmar que a compositora pode nesta altura responder apenas pelo seu nome e pelo seu trabalho consistentemente sólido e com personalidade suficiente para servir de suporte para uma carreira longe do banal.

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