Vila Real brinda aos filhos da terra com o exemplo de Vítor Murta

Guarda-redes acumula funções e prepara-se para completar o ciclo dos "grandes" do futebol português.

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Adriano Miranda

Vila Real sabe que já ganhou antes mesmo de entrar em campo para defrontar o todo-poderoso campeão nacional, por 16 vezes vencedor da Taça de Portugal. O FC Porto é um adversário de uma galáxia à parte, mas que também pode ser considerado um vencedor antecipado por ter sabido respeitar a vontade e a tradição da prova, ao assumir o papel de ilustre visita em casa humilde, mas de vistas invejáveis.

À procura da identidade pelos campos da honra dos campeonatos distritais (ocupa actualmente o terceiro lugar, com quatro vitórias e menos um jogo que os dois primeiros), o Sport Clube Vila Real agradece o gesto e prepara-se para receber os "dragões" com toda a pompa e circunstância, o que não deve ser confundido com vassalagem ou deferência, que em campo imperará o espírito dos verdadeiros lobos.

Reunir as condições logísticas exigíveis para, com orgulho, levar o Monte da Forca ao país e, quem sabe, ao mundo, num espectáculo mediático inédito na história quase centenária do clube, pode parecer pouco, embora defina a dimensão e ambição do projecto vila-realense, uma aposta nos filhos da terra, ainda que jovens e estudantes. Mas também por isso instrumentos infalíveis de união e da mensagem implícita no desejo de revitalizar o futebol, por mais dúvidas ou calvários que a interioridade possa colocar.

O regresso do FC Porto à capital do distrito da antiga província de Trás-os-Montes e Alto Douro, volvidas quase três décadas, pode ser o catalisador ideal. O peso financeiro dos 4000 adeptos já garantidos nas bancadas do complexo desportivo - cuja lotação esgotou em menos de 24 horas - pode não vir a reflectir-se exclusivamente nas bilheteiras, assumindo-se antes de tudo como um investimento na memória colectiva.

E esse é o preço que o Vila Real assumiu pagar do próprio bolso para ter a genuína festa da Taça de Portugal em casa, recusando outros subterfúgios. Visão que os cerca de 30 mil habitantes preservarão, da mesma forma que Vítor Murta recorda a visita portista de 1991, quando o actual guarda-redes, treinador-adjunto e ainda responsável pelo projecto de criação de um ADN exclusivo dos guarda-redes no clube dava os primeiros passos no futebol.

"Tinha pouco mais de dez anos e não fui ver o jogo, mas lembro-me bem da euforia que tomou conta da cidade naqueles dias. Parece que estamos a viver outra vez as mesmas emoções", constata, em declarações ao PÚBLICO, enquanto se mentaliza, aos 39 anos, para experienciar algo que já não esperava viver tão perto do ocaso da carreira.

"Por vezes, um pormenor muda tudo. Comecei a época como treinador dos guarda-redes e acabei na baliza por lesão do titular. Isto quando ainda tentávamos fechar o plantel com um guardião. Agora é um pouco estranho. As pessoas podem pensar que sou eu quem decide quem defende. O problema foi ter feito o primeiro jogo e o treinador verificar que continuo a dar garantias", explica-se Murta, também ele um filho da terra que, depois de ter pisado os principais relvados nacionais e de ter cumprido o sonho de defrontar Sporting e Benfica, está na iminência de fechar um ciclo mágico. Um ciclo que poderá ter como recompensa a camisola de Iker Casillas, "apenas" um dos melhores do mundo.

Mas o que Murta gostava mesmo era de ver o Vila Real atingir a eliminatória seguinte, vingando as duas saídas de cena que aconteceram os quartos-de-final frente a outro grande do futebol nacional. "Em 2002 perdemos no Monte da Forca com o Sporting", recupera, ainda com o golo de André Cruz a resistir à erosão dos anos. O Sporting de Boloni venceu por 0-4, números idênticos aos da goleada infligida pelo FC Porto em 1991.

Vítor Murta pretende mudar a história, apesar de carregar o peso de um outro 4-0 mais recente, em Alvalade, ao serviço do Famalicão. "Ainda defendi um penálti do Montero, com o resultado em branco", circunscreve, preparado para uma noite intensa, mas mais feliz do que a vivida na Luz, com as cores do Gil Vicente, em 2013. "O Facchini lesionou-se e fiz a segunda parte", recupera. Uns 45 minutos que, apesar dos dois golos sofridos (o jogo terminou 5-0, com 3-0 ao intervalo), valeram a Murta um final de temporada como titular na I Liga, pela mão de um conterrâneo.

"Encontrei o Paulo Alves em Vizela… Apesar de sermos de Vila Real. Ele gostou do meu trabalho e convidou-me para o Gil Vicente. Nessa ocasião realizei o sonho de jogar na Liga e defender na Luz. Mas a história ainda não acabou. Curiosamente, nunca defrontei o FC Porto. Mas parece que ainda há mais um capítulo", sorri, sem tirar os olhos do sintético onde a formação prepara as futuras fornadas.

O objectivo é contribuir para formar, com o maior grau de especialização possível, sucessores para a espinhosa e solitária missão de manter as balizas intactas. "Apresentei um projecto ao clube e vamos tentar criar um modelo de guarda-redes à imagem do Vila Real. Fico responsável pela coordenação desta área específica, que poderá ter bons resultados se houver um desenvolvimento coerente das qualidades dos novos talentos", defende Murta, preparado para dar o exemplo num jogo que poderá assumir capital importância no arranque de uma nova etapa.

"As diferenças entre o Vila Real e o FC Porto são tremendas. Depois deste jogo, o nosso adversário tem novo compromisso em Moscovo, para a Champions, enquanto nós voltamos à nossa rotina. Essa é a distância a que nos encontramos actualmente do FC Porto. Mas acredito que vamos crescer. Estamos a consolidar uma equipa e temos tido bons resultados. E esse é o exemplo e o caminho a seguir".

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