Comandos: “O médico disse que nunca tinha visto nada assim”, contou o pai do jovem que morreu

Dylan da Silva e Hugo Abreu, 20 anos, morreram em Setembro de 2016, no curso dos Comandos. Nesta quinta-feira, em mais uma sessão do julgamento de 19 militares, o pai de Dylan contou que quando chegou ao hospital o médico lhe disse que “nunca tinha visto nada assim”. “Disseram-me para tirar fotografias, porque não era normal.”

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Lucinda Araújo (à esquerda) à chegada ao Campus da Justiça, em Lisboa Daniel Rocha
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Arguidos à chegada ao Campus da Justiça, nesta quinta-feira Daniel Rocha

Dylan da Silva, um dos recrutas que faleceram durante o curso dos Comandos n.º 127, em Setembro de 2016, apareceu ferido num dos fins-de-semana em que foi a casa. Os seus pais foram ouvidos nesta quinta-feira, em Lisboa, no julgamento de 19 militares acusados de abuso de autoridade por ofensa à integridade física. E contaram o episódio, que se passou ainda antes de o curso começar. “Chegou a casa com um olho negro”, disse o pai, Vítor Silva.

Numa outra ocasião, relatou a mãe, Lucinda Araújo, o jovem chegou “com dores nos maxilares”. E contou-lhe que um instrutor lhe tinha dado um murro, porque pensara que tinha passado por ele tocando-lhe nas costas. “Porque não disseste que não tinhas sido tu?”, perguntou-lhe então Lucinda. “Porque ainda ia levar mais”, respondeu-lhe o filho. As datas exactas não ficaram registadas, mas estas lembranças são dos meses relativos ao período de preparação que antecedeu o curso, a partir de Abril de 2016, e durante o estágio, no mês de Agosto.

Dylan da Silva e Hugo Abreu, ambos com 20 anos, morreram por falência dos órgãos provocada por desidratação extrema depois da chamada Prova Zero do curso. Hugo a 4 de Setembro e Dylan seis dias depois, no hospital.

Os país de Dylan, Vítor Silva e Lucinda Araújo, casados quando o filho morreu, e agora divorciados, foram prevenidos pela juíza que preside ao colectivo, Helena Pinto, que durante a audiência desta quinta-feira, dedicada aos assistentes no processo, seriam colocadas perguntas que lhes pareceriam “cruéis”, susceptíveis de lhes ferir a sensibilidade, mas que era importante colocá-las para perceber o que se passou nos dias antes das mortes.

“Não era normal”

Foi Lucinda Araújo quem mais detalhes conseguiu relatar nas declarações que fez, mas foi o pai de Dylan quem proferiu uma das frases mais notadas da sessão da manhã desta quinta-feira. O médico no hospital onde o filho começou por ser assistido – Hospital do Barreiro antes de ser transferido para o Curry Cabral em Lisboa – disse que “nunca tinha visto nada assim”, relatou. “Disseram-me para tirar fotografias porque não era normal.”

“Nunca me deram esperança que o meu filho recuperasse”, disse a mãe. A juíza perguntou-lhe como soube que o seu filho não estava bem e quando e por quem foi contactada e pediu-lhe para descrever o estado em que encontrou o jovem na cama de hospital. “Recebi um telefonema do médico, na segunda-feira de manhã [dia 5 de Setembro] dizendo que o meu filho tinha entrado em falência multiorgânica e tinha sido internado no hospital do Barreiro.”

“Como estava fisicamente?”, perguntou a juíza. Vítor Silva já tinha afirmado no seu depoimento (quando Lucinda Araújo ainda estava retirada na sala onde aguardam as testemunhas, já que estas estão impedidas de ouvir os depoimentos de quem as antecede) que encontrara o filho com os braços todos negros e esfolados.

Lucinda Araújo confirmou o que o ex-marido dissera. E acrescentou: “O meu filho tinha o braço esfolado e inchado.”

Ricardo Sá Fernandes, advogado de Vítor Silva e dos pais de Hugo Abreu, pediu para a testemunha esclarecer a parte do braço que estava negro, e se além de negro estava esfolado. “Esfolado, sim, sem pele. A namorada veio com sangue na blusa depois da visita, sangue do braço dele”, acrescentou serenamente. “Quando vi o meu filho naquele estado tiveram que me tirar de lá porque eu não aguentei.”

O sonho de ser comando

Dylan tinha o sonho de ser comando, acreditava que o curso lhe traria oportunidades, contou Lucinda Araújo, que sempre teve dúvidas que fosse uma boa opção. Mas ele terminou em primeiro lugar o curso de recruta e era determinado. “Desistir nunca”, chegou a dizer à mãe quando esta o viu “aflito e enervado” num desses dias em que veio a casa e lhe sugeriu que desistisse.

“Ele tinha orgulho de poder usar a bóina. E queria o melhor, queria ter as portas abertas depois de ter este curso. Tinha orgulho. Dizia que queria ter o curso ‘para a [sua] família se poder orgulhar [dele], para poder defender a pátria’”, contou Lucinda, levando o ex-marido a abandonar a sala em lágrimas.

“Ele não queria preocupar-me. Mas eu preocupava-me um bocadinho”, continuou a mãe de Dylan voltando ao dia em que o filho apareceu com um olho negro, antes do curso. “Antes de chegar enviou-me uma mensagem para eu não ficar surpreendida: ‘Olha, mãe, eu já levo um olho negro.’”

“Ele disse que levou um murro por não estar a posicionar bem a arma. Mais tarde vim a saber que foi mais do que um murro”, continuou Lucinda Araújo. Soube disso quando privou com quatro colegas do seu filho, do tempo do estágio, que o foram visitar ao hospital. Nessa ocasião soube por estes amigos que não chegaram a ser admitidos no curso, depois do estágio, que o filho teria levado mais murros de um sargento que viria a ser um dos instrutores do grupo de Hugo Abreu, o outro formando que, a 4 de Setembro daquele ano de 2016, primeiro dia da Prova Zero, morreu por falência multiorgânica provocada por desidratação extrema.

Dylan da Silva não era dos que desistiam, mas chegou a dizer à mãe que desistir não era uma opção, porque nesse caso “seria obrigado a pagar uma indemnização ao Exército”, explicou Lucinda Araújo.

Ex-recruta paga indemnização

Ainda a pagar uma indemnização está o ex-recruta Rodrigo Seco, que se constituiu assistente e pede uma indemnização pelas ofensas a que diz ter sido sujeito durante o estágio. Era do grupo dos graduados, onde estava Hugo Abreu. O grupo estava sob a responsabilidade do tenente Hugo Pereira e do sargento Rodrigues, que surgem na lista dos arguidos logo depois do director do curso, tenente-coronel Mário Maia, e do responsável pelos instrutores, capitão Rui Passos Monteiro.

Rodrigo Seco continuará a ser ouvido na sessão da tarde desta quinta-feira. Logo no início, em resposta à juíza, disse que não se sentia “inibido por falar perante os arguidos”.

Já os pais de Hugo Abreu, que vivem em França, serão ouvidos no dia 25.

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