Mortes em 2016 não fizeram baixar entradas nos cursos de Comandos

Oito oficiais, oito sargentos e três praças começam a ser julgados nesta quinta-feira em Lisboa. Defesa inclui, como testemunhas, dois coronéis ex-responsáveis pelo Regimento dos Comandos.

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No ano passado 59% dos instruendos dos cursos de Comandos desistiram Rui Gaudêncio

Dois anos depois das mortes nos Comandos, em 2016, o número de instruendos que iniciaram este ano esta instrução chegou aos 156. É o número mais alto desde 2012, pelo menos, quando estavam 118 recrutas presentes no primeiro dia de formação. Em Abril passado, começou o Curso n.º 130, com 98 jovens. No início deste mês, arrancou o 131.º, com 58.

Os dados foram enviados ao PÚBLICO pelo gabinete de imprensa do Exército, quando se inicia, nesta quinta-feira, o julgamento dos 19 militares, todos comandos, acusados por crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física — um crime estritamente militar —, durante o Curso 127, quando morreram dois recrutas, em Setembro de 2016. 

Porém, o que mais marca os cursos feitos após o ano de 2016 é o aumento muito significativo do número dos que desistem antes de terminarem a instrução. Em 2014, por exemplo, não houve nenhuma desistência em 67 recrutas. No ano seguinte, apenas um em 125 abandonou. Em 2016 — o ano das mortes de Hugo Abreu e de Dylan da Silva, ambos com 20 anos — foram 45 os que abandonaram (32% dos que tinham começado). E em 2017 foram 74 — 59% dos jovens que entraram nos dois cursos feitos nesse ano. Assim, pela primeira vez, desde 2012, a percentagem dos que desistiram ultrapassou a taxa dos que concluíram com sucesso e receberam o crachá e a bóina vermelha de comando.

Até quarta-feira, e apesar da insistência do tribunal já neste mês de Setembro, o Estado-Maior do Exército não tinha respondido a um pedido de informação sobre a proporção de aprovações e de desistências (e as razões das mesmas) nos últimos dez anos de cursos dos Comandos.

O pedido foi apresentado em Julho por Alexandre Lafayette, advogado de defesa de um dos principais acusados e director do curso, no sentido de demonstrar que o Curso 127 não teria sido diferente de outros e que as circunstâncias das mortes terão sido alheias ao procedimento dos responsáveis pela instrução nas primeiras horas de três dias da chamada “Prova Zero”, como consta do processo consultado pelo PÚBLICO.

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Coronel entre os juízes

Se nenhum dos 19 acusados prestar declarações no início do julgamento, os pais de Hugo Abreu e Dylan da Silva, constituídos assistentes, deverão ser os primeiros a ser ouvidos. Os militares acusados podem optar pelo silêncio, escolher falar agora ou só no fim do julgamento. Quase todos são do quadro permanente do Exército. Oito são oficiais — um tenente-coronel, três tenentes e dois capitães. E todos continuam sujeitos à medida de termo de identidade e residência até ao fim do julgamento. Há audiências marcadas até 19 de Dezembro.

Após serem ouvidos os pais das vítimas, representados pelos advogados Ricardo Sá Fernandes e Miguel Santos Pereira, começarão a ser ouvidas as testemunhas da acusação — largas dezenas. Neste conjunto estão instruendos do curso, alguns assistidos no local ou no hospital, que já prestaram depoimento durante a fase de inquérito, conduzida pelos investigadores da Polícia Judiciária Militar (órgão de polícia criminal que desde anteontem está sob suspeita no âmbito do “caso Tancos”) e liderada pela procuradora Cândida Vilar.

A juíza Helena Pinto preside ao colectivo, constituído ainda por Ana Cristina da Silva e pelo o coronel Jorge Ferreira — o julgamento de crimes militares exige a presença de um militar. Neste julgamento, que se realiza no Tribunal Central Criminal, no Campus da Justiça em Lisboa, o Ministério Público estará representado por José Nisa.

O coronel Dores Moreira e o coronel Pipa Amorim, que dirigiram o Regimento dos Comandos nos últimos anos, até Junho último, são duas das dezenas de testemunhas da defesa. Este último foi acrescentado em Julho ao rol inicialmente pedido por Alexandre Lafayette, que representa dois dos principais acusados — o director do curso, tenente-coronel Mário Maia, e o encarregado de instrução do grupo de graduados, em que estava Hugo Abreu, sargento Ricardo Rodrigues. No aniversário do Centro de Tropas dos Comandos, em Junho, Pipa Amorim disse que os 19 acusados, todos comandos, que iam ser julgados, estavam a ser vítimas de uma “cabala”. O coronel foi afastado pouco tempo depois, por decisão do chefe do Estado-Maior do Exército, general Rovisco Duarte, cujo nome também consta no processo.

Lafayette acusa o general Rovisco Duarte de ter ignorado uma denúncia de Fevereiro de 2017 contra o coronel Dores Moreira, que foi comandante do regimento até Junho desse ano. De acordo com a defesa, este oficial superior teria supostamente disponibilizado à investigação do Departamento de Investigação e Acção Penal um guião “falso” da Prova Zero, que indicava que os instruendos poderiam beber até cinco litros de água por dia, e não o que foi efectivamente disponibilizado aos instrutores para a formação, que indicava três litros.

Além da questão criminal, será analisada a questão civil. As famílias das vítimas apresentaram pedidos de indemnização aos arguidos e ao Estado, num total de cerca de 700 mil euros. O advogado Ricardo Sá Fernandes defende que houve falta de assistência médica necessária e adequada à gravidade da situação e que os instrutores arguidos sabiam que estavam a provocar danos aos instruendos e violaram regras militares nacionais e internacionais, quando impuseram “castigos e maus tratos não permitidos no seio das Forças Armadas”. O curso realizou-se sem referencial — só mais tarde aprovado —, o que, segundo a acusação, resultou na ausência de regras uniformes e limites, deixando ao critério dos instrutores o grau de hidratação dos 67 instruendos e o tipo de castigos a aplicar. Isto num dia em que as temperaturas rondaram os 40º graus.

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