Pilas, censura e hipocrisia

Em Serralves, explícito, só mesmo o sexo. Tudo o resto permanece tristemente escondido.

Os jornais que acompanharam a audição parlamentar sobre o caso Serralves garantiam, na quarta-feira, que, após três horas e meia de depoimentos, não era possível chegar a grandes conclusões, já que as versões eram contraditórias. Eu concordo que as versões eram contraditórias, mas parece-me óbvio que é possível chegar a algumas conclusões. E a principal conclusão do que se passou com a exposição de Robert Mapplethorpe é esta: em diferentes momentos, as duas partes – director e administração – fizeram asneira, e a polémica deriva do facto de nenhuma delas admitir as asneiras que fez. É pena, porque se houvesse menos hipocrisia e mais sinceridade, haveria aqui uma boa discussão para ter.

À sombra dos magníficos falos de Mapplethorpe, que continuam a perturbar almas 40 anos depois (alguma coisa bem feita o homem fez), eu gostaria muito de assistir a um debate sério sobre os limites da liberdade de um curador (há?, não há?), e sobre quais são as áreas de âmbito artístico em que uma administração pode intervir (pode?, não pode?). Infelizmente, andamos em vez disso a discutir verdades e mentiras, porque apesar de tanta virilidade à mostra, neste caso ninguém conseguiu comportar-se como um homenzinho.

João Ribas sempre foi ínvio nas suas explicações para a demissão e para as acusações de censura, supostamente por ter um contrato de confidencialidade; a administração de Serralves embrulhou-se na história da sinalética e nunca esclareceu o pedido de retirada de dois quadros, nem quando o fez (duas horas antes da abertura da exposição, acusa Ribas), preferindo entreter-se com a hermenêutica da palavra “censura”. Aliás, um bom exemplo de como não dizer nada tendo oportunidade para explicar tudo é o artigo que o administrador de Serralves José Pacheco Pereira assinou neste jornal a 29 de Setembro – “A arrogância das cliques culturais” –, onde há indignação a mais e factos a menos.

E os factos mais relevantes são estes: 1) João Ribas deu uma entrevista ao PÚBLICO antes da abertura da exposição de Mapplethorpe onde garantiu que não haveria salas reservadas, pois “um museu não pode condicionar, separar ou delimitar o acesso às obras” – o que fez entornar o caldo com a administração, que sempre deu como adquirido a separação das fotos com pila a mais; 2) alguém da administração exigiu, pouco antes da inauguração, a retirada do local já estabelecido das obras Larry (contém pila murcha) e Dennis Speight (contém espantosa pila erecta), gesto esse que Ribas considerou censório – coisa que a administração recusa, por não ter exigido que as fotos saíssem da exposição, mas somente do sítio onde se encontravam.

Note-se que estes factos que dou como estabelecidos resultam de um processo dedutivo, porque nenhuma das partes teve a dignidade de apresentar uma cronologia dos seus erros, ou, pelo menos, das suas faltas de senso. Devo dizer que a entrevista de Ribas me parece incompreensível, tal como o pedido da administração de retiradas das obras me parece inaceitável. Mas o que me parece pior em tudo isto é mesmo a cultura de opacidade das instituições portuguesas, onde toda a gente parece ter pavor daquela coisa a que costumamos chamar “a verdade”. Entre ditos, não-ditos e interditos, este processo só provou que se podem pendurar as pilas erectas de Mapplethorpe nas paredes de Serralves mas que ninguém aprende nada com a sua crueza ostensiva. Por ali, explícito, só mesmo o sexo. Tudo o resto permanece tristemente escondido.

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