A fábula de uma luta de classes que já acabou

A recordação dum país, a Itália, a recordação dum cinema que interpretou esse país: Feliz como Lázaro, de Alice Rohrwacher.

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É um mundo estranho, aquele para onde Feliz como Lázaro nos convoca. É a Itália, indubitavelmente, a Itália que se reconhece da realidade, e também a Itália que se reconhece de algumas memórias do cinema italiano, mas é como se sobre essa Itália Alice Rohrwacher lançasse um manto de fantasia e alegoria, e tudo se passasse num lugar à parte, criado pelo cinema e para o cinema, entre os contos de fadas clássicos (até um pouco Disney reflectido num espelho fosco, como a personagem da Marquesa interpretada por Nicoletta Braschi) e, por exemplo, as peculiares fábulas de Pasolini, como Passarinhos e Passarões (do protagonista Lázaro, a cargo do não-actor Adriano Tardioli, Rohrwacher extrai um tipo de ingenuidade vitalista que não fica longe de lembrar Ninetto Davoli).

Mas é bem a Itália que se encontra no fim destes cruzamentos todos, e na parte final do filme, já na cidade, vemos mesmo alusões a um das questões candentes da cena política italiana contemporânea, a presença dos emigrantes africanos ou árabes. Seja o espectador, então, bem-vindo à aldeia de Inviolata (nome que é, como se costuma dizer, “todo um programa”), onde os habitantes, “operários e camponeses” (como no título do filme de Straub e Huillet), são mantidos num suave cativeiro, cortado do resto do país, pelos dotes “prestidigitadores” da Marquesa Alfonsina, que assim os mantém docilmente ao seu serviço. Depois, o filho dela, Tancredi, quer ir conhecer a cidade, e com a ajuda do cândido Lázaro congemina um plano de fuga – e aí começa a aventura.

Que é muito diferente de O País das Maravilhas, o precedente filme de Alice Rohrwacher, também a sua introdução ao público português. História de uma família, de evidentes inspirações autobiográficas, e já piscando o olho a um realismo mágico, o mundo de O País das Maravilhas dá lugar, em Feliz como Lázaro, a outra coisa. “Não gosto de ficar no que já tenho”, diz Alice ao telefone com o Ípsilon, “para mim o cinema como uma pesquisa contínua tem que se ir sempre um passo adiante rumo ao desconhecido”. Para ela, desde o princípio que o ponto fulcral passava pelo encontro entre a realidade e a fantasia, o realismo e o conto de fadas, e narra-nos o estímulo essencial da sua visão: “Perto de minha casa há um jardim público onde há uma escultura peculiar: uma casa, completamente realista, onde inclusive se pode entrar, mas que está suspensa na diagonal; é assim que penso no filme, um ‘conto social inclinado’, que é também uma maneira de desassossegar  o espectador”.

Se pensamos no realismo mágico da literatura, ou nas alegorias semi-fantasiosas no centro de muitos dos filmes em que Otar Iosseliani contou a história da Geórgia, pensamos também, obviamente, na rica tradição das “fábulas sociais” que encheram o cinema italiano, de de Sica a Pasolini. “Não há uma inspiração precisa”, diz, “mas há uma inspiração profunda”. Há um reconhecimento, o reflexo duma memória – “não pretendo deliberadamente inscrever-me numa tradição, mas fazendo essa tradição parte da minha memória, é óbvio que ela acaba por aparecer, como uma recordação”. Mas, precisa, é “a recordação dum país, a Itália, e a recordação dum cinema que interpretou esse país e dele construiu uma imagem que lhe sobrepôs”.

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Justamente, a Itália, e a Itália contemporânea. Na violência discreta mas intrínseca (ou simbólica), nas alusões à organização social, aos fenómenos da imigração, Feliz como Lázaro favorece uma aproximação à actualidade, sempre em espelho distorcido. Quando Alice escreveu o argumento, há dois anos, ainda não havia Salvini no governo mas agressividade social (mormente face à imigração) já se verificava. “Foi por isso que quis centrar o filme na migração doméstica, algo que sempre aconteceu em grande escala na Itália, e é um fenómeno que a Marquesa, que personifica uma espécie de ‘grande enganadora’, esconde do seu povo”. “É um filme”, continua, “sobre as prisões que existem hoje, prisões mentais, não evidentes, como o rio que os camponeses têm medo de cruzar, e um filme que tenta reagir contra ‘o medo do outro’, que está na raiz da violência total e assustadora que verificamos hoje em Itália”.

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Alice Rohrwacher lança um manto de alegoria sobre Itália e tudo se passa num lugar criado pelo cinema e para o cinema, entre os contos de fadas clássicos e as fábulas de Pasolini

Há qualquer coisa na Marquesa, na sua “prestidigitação” vulgar e barata, que lembra a televisão – esse velho tema que assombra o cinema italiano desde os anos 70 (quando apareceram as cadeias privadas de Berlusconi), tão bem estampado nos últimos Fellinis, em quase todo o Moretti, em muito do Bellocchio. Mesmo em O País das Maravilhas havia essa presença, nefasta, da televisão. De modo que perguntamos directamente: a Marquesa é a televisão? Alice também responde directamente: “sim, representa uma posição que na realidade é desempenhada pela televisão”. É o engano, a manutenção dum statu quo, mas também a legitimação dos sentimentos, como se “o único drama legítimo” fosse o “drama da burguesia”. A televisão italiana, diz, “não existe para legitimar os sentimentos dramáticos dos camponeses, existe para os fazer espectadores dos dramas da burguesia”. E dá um exemplo de uma cena do filme em que pensou em expor isto visualmente: “a cena em que a filha de Nicola foge, com gestos e gritos muito dramáticos, a que os camponeses assistem como se estivessem a ver televisão”. São os camponeses prostrados perante a única dramaturgia aceitável, a da burguesia.

O que dá, finalmente, um retrato de uma Itália bastante feudal. É nesse feudalismo que Alice reconhece, ainda hoje, o seu país? “Sim, estou convencida de que sim. Quer dizer, a luta de classes já acabou, e acabou porque alguém a ganhou – foram as Marquesas”. E a luta foi ganha, continua, “pela neutralização do próprio espírito de classe, pela desactivação de qualquer aspiração colectiva, trocadas por um amontoado de aspirações individuais”. Frisa que, no filme, mesmo as personagens mais simpáticas à câmara (Lázaro, Tancredi) agem em nome e interesse próprio, não há altruísmo: “Lázaro não vai ao banco buscar dinheiro para as pessoas que precisam dele, Tancredi chora por si, não pelos outros”.

De algum modo, todo este risco de sobrecarga simbólica entra em diálogo com a constante oscilação do tom do filme – do real para a fantasia e vice-versa, do humor para a gravidade e em caminho contrário. “É como ser um funâmbulo”, diz Alice, “andar sobre um fio correndo o risco de cair”. Inclusive, o risco de cair no ridículo. É assim que concebe o seu métier: “Queria voluntariamente chegar a um ponto de contacto com o ridículo, mas parar um passo antes; aliás, com o trágico também, chegar lá perto mas ficar a um passo”. Foi a ideia que a guiou, e que partilhou com a equipa com os actores.

Os actores, que configuram outro encontro, na coexistência de profissionais e amadores sem experiência prévia. “A luta do cinema”, diz Alice, é sempre “feita de encontros perigosos e difíceis”. Entre o argumento e a sua transfiguração pela mise en scène, mas também “entre pessoas muito diferentes, no perfil e na experiência”, que é o que gosta de fazer acontecer quando junta profissionais a não-actores. Nem Adriano Tardioli (que encontrou na escola técnica, e foi difícil de convencer a trabalhar no filme) nem Luca Chikovani (que, conta Alice, é uma “estrela do YouTube italiano, estava habituado a dirigir-se a si próprio mas totalmente inexperiente na posição de ser dirigido por outrem”) possuíam qualquer experiência prévia. Pelos seus rostos e pelas suas presenças passa também muita da estranheza deste filme e deste mundo, desta dramaturgia alegórica que corre alegremente, e corajosamente, o risco de “cair” – um risco que, valha a verdade, não se vê com muita frequência.

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