Misantrópico amante da humanidade

Recolha das reflexões de um dos expoentes do romantismo e um dos mais pessoais intérpretes do legado clássico: Giacomo Leopardi.

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No seu admirável posfácio a esta edição, Rolando Damiani descreve como “um Zibaldone em miniatura” (p.152) os Pensamentos de Giacomo Leopardi, que agora se traduzem entre nós pela primeira vez. “Redigidos e coligidos, muito provavelmente, entre 1831 e 1835, embora tenham ficado inéditos durante a vida do autor” (p.6), eles constituem, por conseguinte, como que o epítome de um opus magnum desmedido e fascinante — “mais de 4500 páginas redigidas entre 1817 e 1832” (p.152). Onde o Zibaldone irradia a sua acção meditativa através de todos aqueles milhares de páginas, os Pensamentos concentram-se numa dimensão comparativamente breve. Trata-se de 111 textos de âmbito tão universal quanto os da obra maior (com as quais têm afinidades directas), que abarcam temas literários, costumes contemporâneos e antigos, a Itália, a herança clássica e, acima de tudo, o ser humano na sua dimensão antropológica. A visão de Leopardi é profundamente pessimista, misantrópica, na verdade, eivada de um cepticismo que seria, porventura, tanto um traço de personalidade veridicamente intenso, quanto a derivação mais ou menos directa de uma cultura clássica que nele se encontrava fortemente arraigada.

Enquanto “romântico”, Leopardi tê-lo-á sido na medida em que, por exemplo, Lord Byron o foi. Aparentemente, nada poderia ser mais linear. Byron é quase o romântico por antonomásia. E, no entanto, o autor de Don Juan era um espírito clássico, que quase apeteceria chamar empedernido, não fosse o ter ele também sido uma genial decorrência do romantismo em que viveu e fez a sua obra. Mas, para ele, Alexander Pope não deixava de ser “o melhor dos poetas”. Como em Leopardi todas as adesões vão para o legado clássico. Quando o poeta italiano escreve “A velhice é o mal supremo, porque priva o homem de todos os prazeres, deixando-lhe porém os apetites” (p.23), esta apologia indefectível da juventude, este desapego “ímpio” da idade, não era cristão, nem romântico, mas pagão e grego. É de Safo, “que diz que morrer é um mal, ‘pois assim o crêem os deuses; de contrário, morreriam eles’” (Aristóteles, Retórica, INCM, 2005, trad. Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto, Abel do Nascimento Pena); é de Anacreonte: “Eros, olhando para a minha barba/ grisalha, com um sopro das suas asas douradas,/ voa ao largo.” (Hélade, Asa, 2003, trad. Maria Helena da Rocha Pereira) Leopardi escreveu mesmo um poema a que chamou Último Canto de Safo — “Morremos. Deposto em terra o véu indigno,/ recolher-se-á Dite a alma nua/ e o cruel erro do cego distribuidor/ das sortes corrigirá.” (Cantos, trad. Albano Martins, Asa, 2005). Mais um exemplo de quanto Leopardi incorporara de tal forma a torrente imemorial dos Antigos, que podia manejá-la, lírica e subjectivamente, como se reescrevesse o clássico por dentro.

De resto, mesmo quando aprofunda as suas reflexões e vai para lá dos fenómenos mais imediatos, como os do natural envelhecimento, Leopardi continua a seguir os Gregos. Em segmentos como “as coisas ignotas causam mais medo do que as conhecidas” (p.13), ou “Nas coisas ocultas vê sempre melhor o menor número de pessoas” (p.23), não deixam, por certo, de perpassar as palavras de Heraclito: “Uma conexão invisível é mais poderosa do que uma visível”; “A verdadeira constituição das coisas gosta de se ocultar” (Os Filósofos Pré-Socráticos, G.S.Kirk, J.E.Raven, M. Schofield, trad. Carlos Alberto Louro Fonseca, Gulbenkian, 2008). Numa das suas Pequenas Obras Morais (Relógio D’Água, 2003, trad. Margarida Periquito), por exemplo, Leopardi põe em colóquio Plotino e Porfírio — “não apenas o meu intelecto, mas também todas as sensações do corpo estão (vou dizê-lo dum modo estranho) repletos dessa vanidade”. Os exemplos canónicos servem-lhe como auctoritates, mas também como armas de arremesso, técnicas de ataque e instrumentos de uma ironia implacável. É o caso de Marcial, “que, quando alguém lhe perguntava por que motivo não lhe lia os seus versos, respondia ‘para não ouvir os teus’” (p.43). E Leopardi recorre ao poeta latino em causa própria, ou seja, para fazer a sua defesa veemente da maldade de declamar em público. Num sentido mais lato, o clássico era, para ele, um ânimo, um modelo de acção, padrão de um comportamento a alcançar — “Se eu tivesse o engenho de Cervantes, faria um livro para purgar a Itália, ou antes, todo o mundo civilizado — como ele purgou a Espanha da imitação dos cavaleiros errantes” (p.39).

O riso de Leopardi, não muito frequente, é o de Voltaire, mais imbuído de ironia do que de brandura — “Quem tem coragem de rir é dono do mundo, quase como quem está pronto para morrer.” (p.111) Rir é, para este autor, menos um reflexo, ou uma válvula de descompressão, do que um ricochete, uma reacção a um mundo que, fundamentalmente, se dá a ver como hostil, perigoso, imprevisível — “uma liga de malandros contra os homens de bem, de vis contra generosos” (p.11); “carnificina que o homem faz do próximo” (p.41)”; “os homens, na sua maioria, são malvados da mesma maneira” (p.61). É curioso, e indício instigante de uma personalidade literária contraditória, que o mesmo autor fosse capaz de afirmar tão candidamente: “a minha inclinação nunca foi a de odiar os homens, mas sim a de os amar” (p.11), quanto: “Os verdadeiros misantropos não se encontram na solidão, mas no mundo: porque é a experiência prática da vida, e não a filosofia, que faz odiar os homens.” (p.123). Quanto mais nega a sua misantropia, tanto mais a afirmam as suas deposições e o que elas traduzem em relação a uma certa visão do mundo e do comportamento humano — “Não se adquire o título de amável senão à custa de padecimentos” (p.45). Talvez estivesse na sua constituição ser, como Pessoa dizia a seu próprio respeito, “Alguém como Rousseau…/ Misantrópico amante da humanidade.” (Paginas íntimas e de Auto-Interpretação, Ática, 1966) Leopardi foi o fruto, fundamentalmente amargo, de uma educação solidíssima, mas solitária, rodeada de mestres espectrais, terríficos — decisivos. Devorador insaciável da sumptuosa biblioteca paterna, aprendeu sozinho o grego e tornou-se um filólogo de sólidos méritos; tendo beneficiado do auxílio de uns quantos preceptores criteriosamente seleccionados, foi, no essencial, um autodidacta de génio, que fez do convívio diuturno com os livros uma fonte inesgotável de fruição e aprendizagem. Sem ter vivido alheio às convulsões políticas e culturais do seu tempo — veja-se o seu poema “À Itália”: “Chora, que tens muito de quê, Itália minha,/ Tu que nasceste para vencer nações” (Cantos) —, Giacomo Leopardi, foi, acima de tudo, um intérprete pessoalíssimo e prodigioso da mensagem clássica, nela imiscuindo a sua profunda individualidade de matiz, aí sim, romântico.

Comum a todas as suas realizações foi o que Fabiana Cacciapuoti chamou a “exigência poética” (Tratado das Paixões, Fim de Século, 2007, trad. Miguel Serras Pereira) de Giacomo Leopardi. Em tudo quanto escreveu, esteve sempre presente o mesmo cuidado formal, um empenho infatigável em fazer jus aos modelos e às realizações do passado, cunhando sobre elas o que provinha de uma personalidade literária idiossincrática e de enorme força.

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