Satanás - nova causa de inimputabilidade?

Se a mais alta figura da hierarquia religiosa considera que Satanás ataca e os religiosos cedem, está a centrar o combate aos abusos sexuais de modo enviesado.

O Papa Francisco veio a terreiro defender que… "a Igreja tem de ser salva dos ataques deste ser maligno, o grande acusador, e ao mesmo tempo tornar-se mais consciente da sua culpa, dos seus erros e dos abusos cometidos no passado e no presente”…in PÚBLICO de 08/10/2018.

Não sei se todos os crentes acreditam que o Diabo existe e, existindo, se é capaz de levar alguém a cometer crimes tão ignominiosos. Numa sociedade moderna, num Estado de Direito democrático, a culpa do agente de condutas criminosas pressupõe e a liberdade, a auto determinação e a consciência. O que significa que se uma prática criminosa não resultar da vontade livre e consciente do agente não é passível de condenação.

Se alguém com uma arma apontada à cabeça for obrigado a praticar um crime, não agiu livre e voluntariamente e daí não poder ser condenado.

Alguém com doença mental impeditiva de ter consciência da conduta criminosa, agindo por um impulso cego, não pode ser condenado pela conduta, quando muito condenado a ser internado em casa de saúde, pois pode revelar-se um perigo.

Quando um bispo, um padre, um cónego abusam sexualmente de crianças, adolescentes ou seminaristas adultos, são para tal empurrados por Satanás ou têm consciência de que estão a praticar um crime?     

Claro que não foi o “grande acusador” o responsável por tal conduta. Seguramente que os dignitários da igreja que cometeram esses abusos fizeram-no de modo voluntário, livre, conscientes de que cometiam crimes, muitos deles encobrindo-se uns aos outros.

Portanto, se o Papa, admitindo a culpa dos religiosos que praticaram abusos, coloca o acento numa suposta capacidade de Satanás influenciar a conduta destes religiosos (conhecedores do tal poder por ofício) está, provavelmente sem o querer, a absolver numa certa medida uma conduta altamente reprovável colocando-se fora dos fundamentos modernos em que assentam as sociedades.

A consciência e a liberdade do agente que comete o crime é essencial; sem ela não há conduta criminosa. Ora se a mais alta figura da hierarquia religiosa considera que Satanás ataca e os religiosos cedem, está a centrar o combate aos abusos sexuais de modo enviesado.

Não é pacífico que todos os crentes aceitem tal poder de Satanás; mas, mesmo os que aceitarem, sabem que o violador não devia ter aquela conduta e o próprio violador também sabia que aquela conduta era altamente reprovável.

Uma coisa diferente será o Papa acreditar que uma fé mais funda poderá ajudar os padres, os bispos e os cardeais a ser melhores cidadãos. Porém, os dignatários religiosos vivem na Terra, no meio dos seus concidadãos, em comunidades reguladas pela lei, e se prevaricam não podem vir invocar uma espécie de inimputabilidade. São homens conscientes e com uma posição de destaque na sociedade conhecendo as leis em que ela assenta.

O Diabo, ou o quer que seja para quem nele acredita, não deverá ter costas tão largas que permita aos padres e bispos invocarem o nome do maligno para se desculpabilizarem.

A admiração do mundo pelo Papa Francisco mantém-se, mas as suas palavras podem estar a acertar num alvo errado do ponto de vista das sociedades onde estamos inseridos.

As sociedades modernas e democráticas estão vinculadas a comportamentos impostos pelas leis que são válidas para toda a comunidade. A fé diz respeito ao íntimo de cada um. O chamado poder de Satanás nunca poderá levar a apagar a conduta do criminoso que ao praticar o crime sabia que o cometia. A fé não é causa de inimputabilidade.

    

       

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