Fernando Haddad, a melhor solução política para o Brasil

Foi um excelente ministro da Educação e desempenhou com competência a tarefa de presidente da Câmara de S. Paulo. Revelou-se um político absolutamente contrário ao modelo cesarista/populista tão frequente no mundo latino-americano.

1. No próximo domingo, salvo gigantesca surpresa, Fernando Haddad e Jair Bolsonaro passarão à segunda volta das eleições presidenciais brasileiras, confirmando a polarização da vida política do seu país, há já muito anunciada. Esta polarização tem suscitado justificada inquietude entre vários analistas da sociedade brasileira, que temem o surgimento de dois Brasis irreconciliáveis. Se esse receio tem algum sentido, há, contudo, que salvaguardar a inexistência de qualquer tipo de paridade entre os dois pólos e as duas candidaturas em confronto.

Por muitos erros que o Partido dos Trabalhadores tenha cometido no desempenho da governação, a verdade é que continua a ser um partido democrático, empenhado num projecto de superação das profundas desigualdades sociais que continuam a caracterizar o Brasil. Esse projecto pode ser discutido, mas não levanta qualquer dúvida quanto ao seu compromisso com a liberdade e o pluralismo. Ademais, Fernando Haddad é um homem de elevada estatura intelectual, professor na Universidade de São Paulo, autor de uma obra respeitável nos domínios do pensamento jurídico e filosófico e detentor de uma biografia política que o recomenda para o exercício da função presidencial. Foi um excelente ministro da Educação e desempenhou com competência a tarefa de presidente da Câmara de S. Paulo. No cumprimento destas funções, revelou-se um político absolutamente contrário ao modelo cesarista/populista tão frequente no mundo latino-americano.

Do outro lado depara-se-nos um candidato destituído de qualquer qualidade moral, intelectual ou política. Basta recordar o elogio que Bolsonaro fez ao militar que torturou Dilma Rousseff no tempo da ditadura, no momento do voto do seu impeachment, em pleno Congresso Nacional, para aquilatarmos o grau de vilania desta personagem. Bolsonaro é ostensivamente racista, declaradamente misógino, despudoradamente violento. Que um bandido deste calibre concite amplos apoios em quase todos os sectores da sociedade brasileira e se prepare para alcançar, logo à primeira volta, votações muitíssimo significativas nos Estados como o de São Paulo ou do Rio de Janeiro, revela bem a dimensão dos problemas que afligem o Brasil contemporâneo. A constatação é dolorosa, mas inevitável: a sociedade brasileira permanece uma sociedade enferma e o respectivo Estado manifesta, sob vários aspectos, um elevadíssimo grau de disfuncionalidade. Diversos historiadores, antropólogos, sociólogos e economistas afadigam-se na busca de explicações para tão inusitada situação. O que terá corrido mal a este imenso e – sob vários pontos de vista – prodigioso país?

Serão múltiplos os factores, desde a herança escravocrata até às recentes vagas de obscurantismo evangélico, que concorrem para tão negativo quadro social, cultural e político. Apesar dos grandes avanços observados no período democrático, subsistem muitos dos graves problemas impeditivos da plena modernização do Brasil: o arcaísmo e arrogância das elites política e económica, a impreparação cultural de quase toda a classe média, a condescendência com práticas de corrupção e nepotismo, a valorização de interesses corporativos, a incapacidade de aplicar um projecto reformista que articule racionalidade económica e justiça social.

A esquerda brasileira tem responsabilidades nestes fracassos. Julgo que o seu maior erro foi não ter conseguido associar uma corrente tipicamente social-democrata, aberta ao mundo e às dinâmicas da globalização, a uma outra corrente mais ligada aos movimentos sociais de base e herdeira de uma visão desenvolvimentista de carácter nacional e estatizante. A primeira seria representada por Fernando Henrique Cardoso e o projecto inicial do PSDB. A segunda corresponderia ao PT. Este último partido cometeu, a meu ver, um erro gravíssimo quando optou por corporizar uma oposição radical e de matizes populistas a Fernando Henrique Cardoso, quer quando este, enquanto ministro das Finanças, aplicou o designado Plano Real, que permitiu o controlo da inflação, quer posteriormente, quando, na qualidade de Presidente da República, se empenhou numa acção reformista de inegável qualidade.

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo de reputação mundial, estadista de primeira grandeza, acabou ele próprio por se aproximar bastante do centro-direita brasileiro, por força das circunstâncias. O que é inegável é que foi um homem que deu prestígio e dignidade à função presidencial.

Lula da Silva, ao contrário do que hoje levianamente se quer fazer crer, foi um Presidente sensato e muito realista. A dada altura, percebeu que para ascender ao poder tinha de abandonar o radicalismo discursivo. Assim que tomou as rédeas do país, empenhou-se em conciliar o rigor na gestão económica e financeira com a promoção de políticas sociais capazes de combater a ancestral pobreza de largas camadas do povo brasileiro. Fê-lo com sucesso e com o devido reconhecimento público. Quando deixou a Presidência da República, a sua taxa de aprovação era da ordem dos 75%. Hoje sabe-se que havia um lado sombrio na actuação política do PT: a sua adesão às tradicionais práticas de clientelismo e corrupção da política brasileira. A sucessora de Lula, Dilma Rousseff, mulher impoluta, governou em circunstâncias extraordinariamente difíceis e acabou por ser afastada da Presidência de um modo particularmente sórdido.

O grande desafio que se coloca hoje à esquerda brasileira é o de conceber um projecto político nacional que articule um reformismo anticorporativo com a valorização adequada de um mercado a funcionar seriamente e com um Estado resoluto na promoção da igualdade. É ao PT que poderá incumbir essa tarefa histórica.

2. Há momentos em que não pode haver qualquer tipo de dúvida. Se eu fosse brasileiro, no próximo domingo votaria em Fernando Haddad, com convicção e com esperança. Haddad provém da ala moderada do PT; uma vez eleito terá condições para estabelecer compromissos com outros sectores da esquerda democrática e mesmo com as áreas mais progressistas do centro político brasileiro, de modo a liderar um projecto de modernização do país sem preconceitos ideológicos primários nem aventureirismos irresponsáveis. Um país ainda tão desigual, tão dramaticamente marcado pelo racismo étnico e social, tão permeável ao elogio da violência, precisa de um Presidente da República empenhado na promoção da igualdade como condição de afirmação da própria liberdade. Não tenho dúvidas de que neste momento, face às circunstâncias políticas prevalecentes, Fernando Haddad é a melhor solução política para dirigir os destinos do Brasil.

3. É cada vez mais óbvio que o juiz Sérgio Moro, seja por que razão for, está dominado por uma obsessão anti-PT que lhe retira clarividência e o condena a um comportamento que contende com os deveres de independência inerentes à função judicial. A divulgação de um depoimento obtido através da delação premiada, em plena campanha eleitoral, a oito dias das eleições, constitui um escândalo e uma indignidade. Custou-me chegar a esta conclusão, mas há hoje razões muito fortes para suspeitar da idoneidade deste juiz. Esta suspeita mancha o Estado de Direito do Brasil.

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