Memória e Museu

Na sociedade contemporânea, a memória suplanta a estética e o museu deve ser capaz de se adaptar a esta transferência do estilo para a emoção.

Este ano, as jornadas europeias do património têm como tema “partilhar memórias”, assunto delicado no âmbito da patrimonialização. A memória, no entender de Tzvetan Todorov, é uma espécie de consciência do tempo, consciência essa que é também seletiva: “A memória não se opõe ao esquecimento. Os dois termos que se opõem são a supressão e a conservação; e a memória é necessariamente uma interação entre ambos. A restituição integral do passado é impossível uma vez que memória implica sempre uma seleção.” Estas palavras de Todorov foram curiosamente proferidas, em 2012, num local que patrimonializa a memória: no Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos, em Santiago do Chile. Trata-se de um museu que visa evitar o esquecimento em relação às atrocidades cometidas contra os direitos humanos, entre 1973 e 1990, no Chile. As datas geram tensão e o antes e o depois não estão presentes, a memória é localizada – foi opção – mas a matéria, os objetos dão-lhe coesão e força. Mauricio Rojas, enquanto ministro da Cultura do Chile, para se afirmar no seu círculo político, quis questioná-lo, considerando-o “uma montagem que visa impactar o espectador, deixá-lo atónito, impedi-lo de raciocinar” – desempenharia o cargo apenas por dois dias. Não é fácil contestar a memória quando esta se “materializa” na cultura material.

A memória aparenta ser intangível, volátil, dá a ideia de que pode, por isso, ser mais facilmente apagada e adulterada. A nossa cultura ocidental procura a evidência, necessita de uma prova material do sucedido, de um documento escrito, de um vestígio tangível, de um objeto, de um corpo. Este aspeto foi muito bem retratado no documentário Nostalgia de la Luz (2010), de Patrício Guzmán, no qual vemos a ânsia dos familiares dos “detidos desaparecidos” em encontrar uma prova material, mesmo que essa prova os obrigue a deslocar-se ao deserto mais seco do mundo (Atacama); cuja dimensão e clima o tornam um lugar inóspito, num espaço que permite esconder ao mesmo tempo que preserva, local escolhido por certos militares para deixar os corpos das vítimas, mas espaço de luz e de esperança para aqueles que procuram vestígios e evidências humanas.

A força do Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos está assente na sua excelente museografía, mas, sobretudo, no impacto das provas materiais: os objetos que os prisioneiros faziam nas poucas horas livres, as cartas dos seus filhos e mulheres, os desenhos das crianças, as imagens, os relatos e os instrumentos de tortura: a narrativa só é forte se tiver a componente material, do mesmo modo que o museu também só tem expressão se tiver uma narrativa. Neil MacGregor, antigo diretor do Museu Britânico, foi claro quando disse, no programa da BBC 4 de apresentação da iniciativa A History of the World in 100 Objects, que os museus servem para “contar uma história através de objectos”. Na mesma linha, o académico de arqueologia John Carman afirma, em artigo de 2010 (Promotion to Heritage: How Museum Objects are Made), que “qualquer objeto é passível de ser um objeto de museu” e David Harvey, geógrafo humano, também deixou a sua contribuição e foi até mais específico, em texto de 2001 (Heritage pasts and heritage presents: temporality, meaning and the scope of heritage studies), afirmando que “qualquer objeto pode tornar-se num objeto patrimonial, não tem propriamente a ver com o valor físico do objeto mas sim com o valor que nós [seres humanos] lhe atribuímos”.

Na sociedade contemporânea, a memória suplanta a estética e o museu deve ser capaz de se adaptar a esta transferência do estilo para a emoção. O museu é um espaço com “tendência” para o simulacro que, como diria Baudrillard, tergiversa a realidade. Na maioria dos casos, os objetos nos museus estão descontextualizados, fora do seu ambiente, e, por conseguinte, torna-se necessário criar uma narrativa que ative a sua memória, a pretérita e a criativa, dando-lhes um sentido social. Sem a formatação da estética ocidental sobre os objetos – tão latente nos museus – estes podem tornar-se selvagens e as suas histórias – já conhecidas – inesperadas, mas, certamente, mais enriquecedoras para os visitantes.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Comentar