“Se Lisboa só pudesse ter um museu, esse museu deveria ser o das descobertas”

Jared Diamond Viveu entre os últimos caçadores-recolectores do mundo e emociona-se com o fim iminente desse modo de vida. Defende que para perceber o mundo actual temos de recuar à pré-história e que há coisas a aprender com as sociedades tradicionais. Para este prestigiado académico, uma das vantagens históricas da Europa é a sua desunião.

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Jared Diamond não é um académico qualquer. Sereno, empático e de ar saudável, na sua presença sente-se como devem ter sido extraordinários os seus 81 anos, feitos há menos de uma semana. Durante décadas conviveu e fez amigos entre os membros das sociedades tradicionais das ilhas da Nova Guiné, que estão entre os últimos caçadores-recolectores do mundo, um modo de vida com seis milhões de anos, prestes a desaparecer. Quando estava nos “trintas” um novo-guineense chamado Yali fez-lhe uma pergunta: porque é que vocês brancos desenvolveram tantas coisas e as trouxeram para a Nova Guiné, mas nós, negros, tínhamos tão poucas coisas nossas? É uma pergunta avassaladora. Para a responder, não basta dizer que as várias sociedades humanas se desenvolveram de formas diferentes, que algumas chegaram à era espacial no século XX enquanto outras se mantiveram com tecnologia da Idade da Pedra até aos tempos modernos. É preciso tentar explicar porquê. Por exemplo, porque é que a agricultura e as ferramentas de metal apareceram em certos locais e não noutros? Estas são para Jared Diamond as razões últimas, necessárias para responder à pergunta de Yali.

Duas décadas volvidas, e já muito depois da morte de Yali, publica um livro com a sua tentativa de resposta, Armas, Germes e Aço. Em três palavras, são estas as razões imediatas para que os europeus e os seus descendentes tenham dominado o mundo num piscar de olhos, de apenas cinco séculos. Mas Diamond tenta chegar às razões últimas, ou seja, aos acontecimentos e circunstâncias que após o fim da última Idade do Gelo fizeram com que as coisas tivessem sido assim. O livro valeu-lhe o prestigiado Prémio Pulitzer em 1998. Tem várias obras de divulgação científica publicadas, todas sucessos planetários. No mais recente “O mundo até ontem” mostra-se grato pelas vantagens da modernidade, mas diz-nos que podemos aprender algumas coisas com as sociedades tradicionais. Não imitá-las, apenas adoptar algumas soluções para problemas específicos que certas sociedades resolveram melhor do que nós.

O pai era físico, a mãe linguista, professora e pianista. Jared é professor de Geografia na Universidade de Califórnia em Los Angeles (UCLA), mas ao longo da vida teve vários interesses e carreiras, sucessivas e em paralelo. Fisiologia, ornitologia, ecologia, história ambiental, entre outras. No final dirá que, apesar da importância da colaboração científica multidisciplinar, há uma vantagem em ter muito conhecimento num cérebro só. Veio a Portugal a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos para participar no encontro O Trabalho Dá Que Pensar. Resume aqui de modo dramático a sua resposta à pergunta de Yali, fazendo uso da arte da síntese, desenvolvida ao longo de décadas de contacto com jornalistas. Daí partimos para as descobertas portuguesas e respectiva proposta de criação de museu em Lisboa. Falamos ainda sobre as diferenças na educação, na avaliação de riscos e no envelhecimento, nas sociedades tradicionais e na nossa. E das vantagens e desvantagens da inteligência artificial. Pelo caminho, mandou-me deitar fora o saleiro.

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Algumas populações humanas permaneceram caçadoras-recolectoras até há pouco tempo. Outras evoluíram para formar sociedades muito complexas. Como é que as coisas aconteceram de maneira tão diferente?
As diferenças entre as sociedades humanas modernas resultam de diferenças na geografia e biogeografia, ao longo dos últimos 10 mil anos. Em particular na disponibilidade de espécies animais e de plantas adequadas para domesticação, mais do que em diferenças entre as pessoas em si.

Se entendi correctamente, não há mérito de uma sociedade particular por ter evoluído de uma certa maneira. Não há diferenças inatas nas populações, as diferenças estão nos seus ambientes?
É verdade. Claro que há diferenças fisiológicas e noutros aspectos. Há razões pelas quais os europeus podem digerir leite e os aborígenes australianos não. Mas diferenças que contam para que algumas pessoas se tornem escritores, empresários e operários metalúrgicos, enquanto outros povos permaneceram caçadores-recolectores, diferenças genéticas nos cérebros, não há provas disso.

Muitas pessoas procuram as raízes da desigualdade no mundo de hoje há 500 anos, quando os europeus chegaram à América. Mas no seu livro Armas, Germes e Aço argumenta que as raízes da desigualdade actual estão algures após o fim da última era glacial (há 13 mil anos) porque as sociedades evoluíram de maneira diferente a partir daí. Isso está correcto?
É verdade. Se alguém me dissesse que todas as diferenças no mundo moderno começaram a surgir há 500 anos, eu diria: olhem para o estado do mundo em 3000 a.C. Na Ásia ocidental, e a começar no Sudeste europeu, já existiam ferramentas de metal, escrita e reis. Enquanto na Austrália havia apenas caçadores-recolectores. E nas Américas, no México e nos Andes, a agricultura estava só a começar. Se um extraterrestre, uma criatura verde de oito pernas da nebulosa de Andrómeda, tivesse visitado a Terra em 3000 a.C. e lhe pedissem para prever quem iria conquistar o mundo, o visitante faria uma aposta correcta. Claro que seriam aquelas pessoas da Ásia ocidental e os seus descendentes. As diferenças em 3000 a.C. eram já tão grandes que foram essas que produziram o mundo moderno.

Escreve a palavra “descobertas” entre aspas, quando se refere às descobertas geográficas ibéricas no século XV. Porquê as aspas?
Porque as descobertas geográficas no século XV foram descobertas dos europeus de coisas que eram conhecidas por outros povos há 40 mil anos! O primeiro europeu a descobrir a Austrália foi um holandês em 1606 [Willem Janszoon]. Esse holandês descobriu a Austrália? Não! Os aborígenes da Austrália viviam lá há 60 mil anos. Foram eles que descobriram a Austrália. As aspas significam: descobertas por europeus.

O presidente da Câmara de Lisboa quer fazer um museu das descobertas. Algumas pessoas argumentam que a palavra “descoberta” esconde a escravidão e a colonização que se seguiram. Acha que devíamos ter um museu das descobertas em Lisboa?
Claro que devíamos ter um museu das descobertas em Lisboa! Possivelmente, a coisa mais importante acerca de Portugal nos últimos 600 anos foram as grandes descobertas feitas por navegadores portugueses. É verdade que Vasco da Gama não descobriu a Índia. Descobriu o caminho marítimo para a Índia. E também não é verdade que um português tenha descoberto o Brasil, já havia um milhão de nativos americanos a viver no Brasil, mas um navegador português foi o primeiro europeu a chegar ao Brasil. E isso teve uma importância enorme para a história mundial, porque levou à colonização europeia do Novo Mundo. Se Lisboa só pudesse ter um museu e tivéssemos de demolir todos os outros, esse único museu deveria ser das descobertas. Mas teríamos de entender o que significa descobertas.

Se escrevêssemos apenas uma página sobre Portugal num livro de história mundial, esse deveria ser o tema? Não o tráfico de escravos transatlântico?
É verdade. Claro que a coisa mais importante acerca de Portugal na história mundial foi o seu papel na expansão europeia pelo mundo. E a expansão europeia no mundo significou muitas coisas, boas e más. Significou o tráfico de escravos transatlântico, o que é mau. Significou a importação de sementes do Novo Mundo para a Europa, o que foi bom para a Europa. Significou o desenvolvimento de sociedades agrícolas altamente produtivas na Argentina, o que é bom. Uma pessoa pode ser selectiva tanto positiva como negativamente. Se uma pessoa disser que a descoberta portuguesa do Novo Mundo foi a coisa mais maravilhosa dos últimos 600 anos... não, disparate! Resultou no tráfico de escravos transatlântico e na matança da maioria dos nativos americanos, o que é mau. Se quisermos dizer que a descoberta portuguesa do Novo Mundo foi inteiramente má... não, não foi! Muitas pessoas querem que a vida seja simples. Que seja tudo bom ou mau. Lamento, talvez a vida seja assim na nebulosa de Andrómeda, mas aqui na Terra o bom e o mau misturam-se!

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Rui Gaudêncio

O que aconteceu quando os europeus se encontraram com os nativos americanos foi em grande parte inevitável?
Infelizmente, sim. Ao longo da história humana quando povos mais poderosos encontraram povos menos poderosos, o resultado foi quase sempre a conquista, a expulsão, às vezes o extermínio dos povos menos poderosos. Foi apenas nos últimos 80 anos que começámos a ter excepções. Quando os europeus “descobriram” as ilhas da Nova Guiné, havia lá populações densas de milhões que viviam com tecnologia da Idade da Pedra. Quando os europeus chegaram, não os mataram todos porque em 1930 já não era considerado aceitável que os europeus exterminassem e expulsassem outros povos. Mas se os europeus tivessem descoberto as ilhas da Nova Guiné 80 anos antes, claro que os teriam matado ou expulsado a todos. Os comportamentos melhores são relativamente recentes. Isto não quer dizer que todos os comportamentos humanos nos últimos 80 anos foram bons. Podemos pensar em várias coisas que aconteceram na II Guerra Mundial que não foram boas.

Deveria um chefe de Estado português pedir desculpa pelo papel do país no tráfico transatlântico de escravos?
Caramba! Eu oiço esse argumento em relação à Austrália. Não estou familiarizado com os argumentos acerca de Portugal, mas devem ser sem dúvida semelhantes. Devem os australianos modernos pedir desculpa pelo que os europeus fizeram aos aborígenes australianos a partir de 1788, quando os britânicos colonizaram a Austrália? Eles mataram, infectaram com doenças e expulsaram das suas terras os aborígenes australianos. Devem os europeus modernos pedir desculpa pelo que os europeus de 1830, 1880 e 1920 fizeram? Um primeiro-ministro australiano chamado John Howard disse que os australianos modernos não devem pedir desculpa pelas coisas que os seus tetravós fizeram, mas sim pelas coisas que fazem hoje. Outros australianos acham que devem pedir desculpa por coisas que o seu povo, os seus antepassados, fizeram. É semelhante nos Estados Unidos. Devem os americanos brancos modernos pedir desculpa pela escravatura? Alguns americanos dizem que sim, outros dizem que foram os seus tetravós, como é que podem pedir desculpa pelo que eles fizeram? É um debate em aberto. A resposta para Portugal deve ser semelhante. Não foi você ou os seus colegas de escola que fizeram o tráfico transatlântico de escravos. Foram os vossos tetra-tetra-tetra-tetravôs. Sente-se responsável pelos actos deles?

Pedir desculpa pela escravatura não é incompatível com o seu argumento de que as causas da desigualdade não são de há 500 anos, mas de há 10 mil anos? Pedir desculpa pela escravatura é pedir desculpa por algo na história recente, mas que não foi determinado pela história recente.
Porque é que os europeus estabeleceram um comércio de escravos transatlântico? Porque é que os africanos não fizeram um comércio de escravos trans-mediterrânico, com africanos a escravizarem europeus? A razão para isso são armas, germes e aço; as origens precoces da domesticação de plantas e animais no Sudoeste asiático, porque havia lá muito mais espécies domesticáveis do que em África. Para além disso, é porque a Eurásia tem um eixo Este-Oeste [com latitudes e climas semelhantes], que permitiu que as sementes chinesas chegassem à Europa. Enquanto a África tem um eixo Norte-Sul [com grandes diferenças de latitudes e climas], por isso as sementes do Crescente Fértil nunca chegaram à África do Sul, até os holandeses navegarem até lá. É por causa da geografia e da biogeografia. É verdade. Por outro lado, essa é a razão última, mas as pessoas apesar disso têm responsabilidades morais. Se o povo A está numa posição de poder, hoje em dia nós dizemos que esse povo não deve usar esse poder para exterminar outro povo. Portugal é hoje mais rico e poderoso do que... o Congo. Se os portugueses fossem para o Congo e começassem a matar congoleses, devíamos dizer que a culpa não é dos portugueses, é porque tiraram partido da domesticabilidade do gado? Outros poderiam argumentar: sim, os portugueses tiraram partido da domesticação do gado, mas ainda assim têm responsabilidades morais quando decidem ir matar congoleses!

No início do século XV, a China tinha capacidade técnica naval para atravessar o Pacífico e chegar à costa oeste dos Estados Unidos? Ou para alcançar a Europa?
Por volta de 1432, sem dúvida que sim. Porque a China tinha uma série de frotas, com navios muito maiores do que os navios de Cristóvão Colombo. E eram frotas muito maiores, que a China enviou primeiro para a Indonésia, depois para a Índia, depois para a costa oriental de África. Parecia que as frotas chinesas estavam quase a dobrar o cabo da Boa Esperança e a chegar à Europa. Infelizmente para a China, houve uma mudança de imperador. O novo imperador disse: estas frotas são um enorme desperdício de dinheiro e trazem coisas inúteis para a China, que já tem tudo o que precisa. A China tinha certamente a capacidade tecnológica para chegar à Europa em 1432. E se tivesse assim escolhido teria também tido a capacidade técnica de chegar às Américas em 1432. Mas escolheu não o fazer.

Foi a unidade política na China que deu vantagem à Europa? Cristóvão Colombo pediu a vários reis para financiar a sua viagem.
Exactamente. Colombo primeiro pediu aos italianos, que disseram que não. Pediu aos franceses, não. Pediu ao rei de Espanha, não. Pediu aos portugueses, não. Pediu aos duques de Espanha, não. Finalmente pediu ao rei de Espanha, que disse está bem, leva estes dois barcos e vai. Na China, não havia seis hipóteses.

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"Um primeiro-ministro australiano chamado John Howard disse que os australianos modernos não devem pedir desculpa pelas coisas que os seus tetravós fizeram, mas sim pelas coisas que fazem hoje."

Na altura não houve uma decisão centralizada que impedisse Colombo de fazer a viagem. Mas hoje há uma União Europeia. Pensa que a União Europeia pode minar esta vantagem histórica da Europa, de não ser politicamente unida?
É um grande desafio para a União Europeia. Como é que se conseguem as vantagens da União Europeia, sem perder a vantagem histórica da desunião? Isto é debatido por historiadores, mas eu vejo, entre as vantagens históricas da Europa, a sua desunião. A Europa teve a sorte de ser, de facto, uma península a oeste do Crescente Fértil. Obteve a escrita, ferramentas de metal e agricultura a partir do Crescente Fértil. Mas a Europa era desunida. O que significa que existiam 200 príncipes que competiam uns com os outros. Se um príncipe tomasse uma má decisão... houve príncipes que aboliram as armas. E sabe o que aconteceu? Príncipes vizinhos, que não tinham abolido as armas, conquistaram esses principados. Quando um imperador na China tomava uma má decisão, tal como, não há mais navios oceânicos, não havia mais 199 príncipes chineses para dizer que mantinham os seus navios oceânicos. Eu vejo as vantagens históricas da Europa como a sua proximidade ao Sudoeste asiático, estar nas zonas temperadas, ter terras realmente férteis, chuva no Verão e ser politicamente desunida. Para a União Europeia, hoje, o desafio é ter as vantagens de um certo grau de união, preservando a vantagem histórica de desunião. Mas eu não me preocupo com isso, de todo. Parece-me que a Europa está a fazer um excelente trabalho na preservação da sua desunião!

Viveu no seio de sociedades tradicionais, na Nova Guiné. Que impacto isso teve em si?
Transformou a minha visão da vida em muitos aspectos. Comecei a visitar a Nova Guiné muito antes de ter tido filhos. Tinha quase 50 anos quando os meus filhos [gémeos] nasceram. Eles nasceram em 1987 e a minha primeira visita à Nova Guiné foi em 1964. Eu tinha vivido na Nova Guiné ao longo de 23 anos, quando tive filhos. O meu modelo de como tratar os meus filhos era como os nova-guineenses criavam os seus. Eu não tinha prestado atenção ao modo como os americanos criavam os filhos. Isso é um aspecto. Outro é a minha atitude em relação ao perigo, que é baseada naquilo que eu vi na Nova Guiné. A minha mulher fica exasperada com a minha reacção a qualquer perigo possível. Mas o meu percurso foi na Nova Guiné. E eu sei que se fizer uma coisa mil vezes e de cada vez há o risco de um em mil que corra mal, se a repetir mil vezes, vou acabar morto. Aprendi isso na Nova Guiné. Os europeus não aprendem isso.

Diz no seu mais recente livro O Mundo até Ontem que devemos estar gratos pelas nossas sociedades modernas, mas também que podemos aprender e incorporar algumas coisas das sociedades tradicionais. Quais?
Para além das duas que já falei [educação e avaliação de riscos], os hábitos alimentares. Tem um saleiro na sua mesa de jantar?

Não. Mas uso um pouco de sal para cozinhar.
Ok. Quando chegar a casa, deite fora o sal da sua cozinha. A comida já tem sal, não há razão para ter sal na cozinha. A escolha é sua. Se gostava de morrer de hipertensão aos 65, mantenha o sal na cozinha. Se gostava de morrer de cancro aos 103, deite fora o sal!

A nossa biologia ainda não está totalmente adaptada ao nosso actual sistema de produção de alimentos? Biologicamente ainda estamos mais bem adaptados a uma dieta de caçadores-recolectores?
Em alguns aspectos, sim. Os portugueses, tal como os americanos, morrem principalmente de doenças não contagiosas. Morrem de hipertensão, doenças cardíacas, diabetes, cancro. Dessas, certamente que os nova-guineenses nunca morrem de hipertensão, doenças cardíacas ou diabetes. Isso é por causa do seu estilo de vida. Eles não têm saleiros. É porque não comem tanto como nós. Não comem regularmente alimentos ricos em gordura, não fazem três grandes refeições por dia. Eles comem batatas-doces ao pequeno-almoço, almoço e jantar durante semanas. Depois matam uns porcos e empanturram-se, ficam mesmo gordos e depois voltam a comer as batatas-doces. Não é que eu esteja a dizer que deveríamos imitar o estilo de vida dos nova-guineenses. Eu não como batatas-doces em três refeições por dia. E estou contente por isso. Eu gosto de comer bem e tento regular a boa comida que como. E deitei fora os saleiros para, pelo menos, reduzir o risco de morrer de hipertensão ou AVC.

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Jared Diamond viveu décadas entre as sociedades tradicionais da Nova-Guiné, facto que haveria de transformar a sua visão do mundo e da vida e até da educação dos seus filhos DR

Quanto tempo vivem em média os nova-guineenses que têm essa dieta?
Até aos tempos modernos, até à medicina moderna chegar à Nova Guiné, a esperança média de vida dos nova-guineenses seria talvez de 50 anos. Isso é terrível. A razão pela qual a sua esperança de vida era de 50 anos não era porque eles morressem de diabetes, AVC ou doenças cardíacas. Eles morriam porque se matavam uns aos outros. Morriam de doenças infecciosas, que nós tratávamos em Portugal e nos Estados Unidos com antibióticos. Morriam em acidentes, na selva. Se caíam e partiam uma perna, não havia médicos nem hospitais. Morriam de fome. As causas de morte na Nova Guiné tradicional são causas que nós já eliminámos em grande parte. Agora que a Nova Guiné foi trazida para o mundo moderno, os nova-guineenses vivem mais, até depois dos 60. Mas também estão a ficar gordos, diabéticos e hipertensos.

Disse que nas sociedades tradicionais da Nova Guiné muitos morriam de doenças infecciosas. Doenças locais ou vindas de fora?
Eram doenças infecciosas tradicionais. As doenças infecciosas europeias foram levadas especialmente para as Américas. Mas como a Nova Guiné fica no extremo leste da Indonésia, que é perto da China, as doenças asiáticas foram provavelmente chegando à Nova Guiné. Por isso não houve uma grande mortandade de nova-guineenses com doenças europeias. Eles morriam principalmente de doenças tropicais, especialmente malária e dengue. E de aquilo que nós chamamos “doenças gastrointestinais”.

Afirma que as sociedades ocidentais são das mais cruéis para os idosos. O que poderíamos aprender com as sociedades tradicionais em relação aos mais velhos?
Muitas sociedades tradicionais proporcionam aos idosos uma vida mais satisfatória do que na Europa. E por outro lado tiram mais partido dos idosos. Os mais velhos têm experiência. Um septuagenário teve muito mais experiência de relações humanas. Claro que um septuagenário não tem mais experiência com isto [telemóvel] do que o meu filho de 30. O facto de eu ter 81 anos não me ajuda nada com isto, peço ajuda ao meu filho. Mas eu e a minha mulher temos muito mais experiência a lidar com pessoas, a tomar decisões e a gerir pessoas. Apenas porque vivemos mais. Isso é algo em que os idosos são bons. Em muitos ou na maioria dos aspectos eu vejo vantagens da vida na Europa quando comparada com a vida nos Estados Unidos. Mas um aspecto em que a vida na Europa é inequivocamente pior do que nos Estados Unidos é que na Europa, muitas vezes, a aposentação é obrigatória. Soube que na função pública, em Portugal, há uma idade de aposentação obrigatória. Se eu fosse o Presidente Kim Jong-un, da Coreia do Norte, e quisesse arruinar-vos, faria exactamente o que os europeus estão a fazer a si próprios. Uma lei de aposentação obrigatória para que deitem fora as vossas pessoas mais experientes. Era igual nos Estados Unidos, mas a aposentação obrigatória foi tornada ilegal há cerca de 30 anos. Pelo contrário, na Nova Guiné, é reconhecido que os mais velhos têm valor. Quando não havia escrita na Nova Guiné, os velhos eram repositórios de conhecimento. É normal na Nova Guiné, quando alguém quer saber alguma coisa, ir perguntar a um velho. Ou se quiser um conselho.

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Ainda há caçadores-recolectores?
Sim. Na Nova Guiné, ainda há alguns grupos. Não muitos, mas ainda há alguns. Na bacia amazónica ainda há caçadores-recolectores e em África também há alguns grupos. Os hadza, da Tanzânia, alguns ainda são caçadores-recolectores. Entre o povo san, do Botswana e da Namíbia, havia caçadores-recolectores até há poucas décadas e provavelmente ainda existem alguns. Os inuítes, os esquimós no Árctico, alguns deles ainda vivem como caçadores-recolectores.

Há futuro para os caçadores-recolectores ou eles serão gradualmente assimilados pelas sociedades modernas?
Provavelmente, dentro de 20 anos não restarão nenhuns caçadores-recolectores em qualquer lugar do mundo. E isso é notável. Praticamente todos os humanos foram caçadores-recolectores durante os últimos seis milhões de anos. E isso significa que seis milhões de anos de história humana vão acabar nos próximos 20.

Os sistemas automáticos tornados possíveis pela inteligência artificial irão libertar os humanos para mais inovação e criatividade?
Sim e não. A inteligência artificial irá tornar algumas tarefas inúteis. As máquinas serão capazes de executar essas tarefas. Por exemplo, os computadores. O meu doutoramento foi em fisiologia laboratorial. Nesses tempos, os computadores que usávamos para fazer modelos de como os nervos conduzem impulsos eléctricos eram muito primitivos e demoravam duas semanas a calcular um impulso nervoso. Hoje, o cálculo é feito imediatamente. Com os computadores, conseguimos fazer coisas muito rapidamente. Isso é maravilhoso. Mas também é terrível. Porque, se olharmos para os jovens, estima-se que as pessoas como os meus filhos passam 80% do seu tempo com aparelhos electrónicos com ecrãs. Passam muito pouco tempo a falar com pessoas, a olhar pessoas cara a cara. Se se passa muito pouco tempo cara a cara com pessoas, então não se aprende a ler os sinais, os ligeiros movimentos, a respiração, a linguagem corporal. Simplesmente não se entendem as pessoas tão bem. Acho que é um dos factores que contribuem para o comportamento cada vez mais rude e cruel nos Estados Unidos. Especialmente na política americana, mas é mais generalizado. É mais fácil escrevermos uma mensagem muito rude se virmos uma mensagem num ecrã. É mais difícil para mim olhar para si e dizer coisa terríveis sobre si do que se estiver as escrevê-las num ecrã. Vejo isto como um dos grandes inconvenientes da tecnologia moderna, incluindo a inteligência artificial.

Quando a agricultura foi adoptada nalgumas sociedades, muitas pessoas ficaram livres para fazer outras coisas, já que nem todos precisavam de passar o tempo a procurar os seus próprios alimentos. Algumas puderam especializar-se na construção de ferramentas, outras tornaram-se soldados a tempo inteiro, políticos ou burocratas. Explica isto nos seus livros. A inteligência artificial, por libertar os humanos de certas tarefas (por exemplo, guiar carros), é semelhante à agricultura? Vê alguma semelhança entre as duas coisas?
Eu vejo exactamente essa semelhança que acabou de mencionar. A agricultura criou novas oportunidades. A inteligência artificial e a tecnologia em geral criam também novas oportunidades. Mas não conheço nenhuma tecnologia que tenha trazido apenas coisas boas. A agricultura é um bom exemplo. Quando foi trazida para a Europa, foi muito marcante. Os primeiros agricultores ficaram cerca de 15 centímetros mais baixos do que os caçadores-recolectores a que sucederam. Inicialmente, a agricultura foi menos nutritiva e forneceu menos vitaminas. Os caçadores-recolectores que viviam em Portugal em 7000 a.C. eram bastante altos. Só depois da I Guerra Mundial é que os agricultores portugueses voltaram a ser tão altos como os caçadores-recolectores de Portugal de 7000 a.C. A chegada da agricultura também esteve associada a muitas novas doenças. A agricultura trouxe grandes benefícios, mas também grandes inconvenientes. Todas as tecnologias têm benefícios e inconvenientes. A inteligência artificial também tem benefícios, mas já está a trazer inconvenientes.

Trabalhou em muitos campos, como antropologia, biologia, ornitologia, ecologia, história e geografia. Como vê a especialização actual na ciência, em que muitas vezes os investigadores estão focados apenas numa gama muito estreita de temas e técnicas?
A especialização, tal como a agricultura e a inteligência artificial, tem benefícios e desvantagens. Consideremos a especialização da genética moderna. Com as modernas técnicas genéticas, podemos analisar o ADN de esqueletos de caçadores-recolectores portugueses de há 9000 anos. E podemos responder a perguntas acerca da pré-história que eram impossíveis de responder antes de termos estas novas técnicas, dos últimos sete anos. Essa é uma grande vantagem da especialização. A desvantagem da especialização é que é muito complicada e é preciso investir muito tempo a aprender estas técnicas genéticas modernas. Quem aprender estas técnicas, provavelmente, não terá muito tempo para estudar línguas, pintura, a música de Bach, os primeiros exploradores portugueses. Sabe menos. Em ciência, para se tirar conclusões, é preciso colaborar com outras pessoas. Mas há uma vantagem em ter muito conhecimento num cérebro só, em vez de em sete cérebros diferentes. A especialização, tal como a agricultura e a inteligência artificial, traz poder, mas também desvantagens. O que é que podemos fazer acerca disso? Podemos tentar minimizar as desvantagens, colaborando. Especialistas em genética a colaborar com linguistas e com arqueólogos, o que felizmente acontece cada vez mais. Os melhores especialistas sabem que não sabem outras coisas e que precisam de colaborar com pessoas que saibam.

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